“Realismo é a atitude ou prática de aceitar uma situação tal como é e estar preparado para lidar com ela em conformidade.” A definição vem no dicionário, e é Harry Dean Stanton quem a lê em voz alta para resolver um caso de palavras cruzadas. Ainda no início do filme, ouvimo-lo transmitir esse conceito aos amigos, antes de beber o seu habitual Bloody Mary no bar do costume, e sorrir como quem não faz outra coisa na vida senão ser realista. Na mesma noite, em conversa ao balcão, dizem-lhe que a alma é essencial para a amizade, mas ele nega a existência da alma. É um homem extremamente prático: executa uns exercícios de yoga todas as manhãs, fuma um maço de cigarros por dia, faz a sua caminhada pela vizinhança e, de caneta na mão, só precisa de encontrar sucessivos conjuntos de letras que resolvam os dilemas quotidianos das palavras cruzadas.
A estreia de John Carroll Lynch na realização, com argumento de Logan Sparks e Drago Sumonja, «Lucky» configura-se como uma carta de amor ao ator Harry Dean Stanton, o homem tranquilo que morreu em setembro, antes da chegada do filme às salas americanas. Baseado nos seus factos biográficos, e contemplando a sua filosofia de vida, tudo se desenvolve em torno desta personagem nonagenária chamada Lucky, que, um dia, no correr da pacata rotina, desmaia em casa sem razão aparente. O médico diz-lhe apenas que está velho e que, apesar de fumar tanto, tem uma saúde de ferro. Mas depois deste pequeno incidente, ele começa a entrar numa íntima conversa com a morte, ou com a ideia desta… É encantador o modo como Carroll Lynch observa essa transição, num filme que colhe intensidade das coisas simples, dos gestos e do movimento de um corpo frágil, que contrasta com a força do intelecto e uma juventude escondida na voz. A propósito, Stanton chega a oferecer uma comovente performance musical numa festa familiar mexicana, que é um dos momentos mais saudosos do filme.
Há outros pormenores que fazem de «Lucky» uma visão apaixonada e apaixonante. Falamos, por exemplo, das curtas aparições de David Lynch (o apelido partilhado com o realizador é mera coincidência), como personagem transtornada com o desaparecimento da sua tartaruga, que se chama Presidente Roosevelt. Estas cenas são de uma belíssima textura dramática, juntado os dois, Lynch e Stanton, num retrato genuíno da amizade que tinham fora do grande ecrã… No fundo, Harry Dean Stanton é como essa tal tartaruga de 100 anos, fugida do dono, que caminha lentamente entre os catos do deserto californiano. Ou, se quisermos, um Travis Henderson («Paris, Texas») inscrito no eterno silêncio da paisagem americana. «Lucky» deixa estas pistas todas, e é um maravilhoso adeus, um tributo singular para um homem singular. Enfim, o último cigarro de um fumador veterano e realista.
Título original: Lucky Realização: John Carroll Lynch Elenco: Harry Dean Stanton, David Lynch, Tom Skerritt. 88 min. EUA, 2017