É espinhoso descobrir na história das narrativas policiais, um agente da lei mais desagradável (na sua linguagem irónica e no intenso uso de termos de baixo calão) do que Dignam, operativo do FBI que rendeu a Mark Wahlberg uma nomeação ao Óscar de Melhor Ator Secundário por «The Departed» (2006), de Martin Scorsese. Os seus personagens costumam ser eticamente controversos, avessos à correção política, com exceção do boxeur Micky Ward, celebrizado em «The Fighter», em 2010. O seu heroísmo costuma ser bruto e torto, de Melvin Smiley (em «The Big Hit») a Victor Sullivan (de «Uncharted»). No princípio da sua notoriedade, pelas veredas do hip hop, com o grupo Marky Mark and the Funky Bunch, na década de 1990, ele enveredou pela senda do Mal com suspense «Medo» («Fear», 1996), numa candidatura a astro devidamente aceite. Passou os últimos 28 anos a estar sempre associado a produções milionárias, como a comédia «Ted» (2012) e a franquia nerd “Transformers”. A vilania, contudo, não costumava ser a sua praia, dada a persona heróica a que se colou. Por isso, «Flight Risk – Voo de Alto Risco» («Ameaça no Ar» no Brasil) desponta como um diferencial no seu repertório, não só por um encontro com a maldade, mas pela conexão com uma dinâmica de filme B, quase trash. É novidade para ele e para Mel Gibson que assina realização.

 
Flagelado no seu posto de astro das altas castas hollywoodianas após uma série de episódios polémicos no final dos anos 2000 (com arruadas etílicas e insultos antissemitas), Mel Gibson não conseguiu suster o seu estatuto de actor de alto gabarito na indústria norte-americana, que ocupava desde os tempos de “Lethal Wheapon” (1987-1998). Ainda assim, o primeiro (e eterno) Mad Max de George Miller preservou a sua boa reputação como cineasta, assegurada pelo Óscar que ganhou em 1995 com «Braveheart». Os US$ 612 milhões arrecadados por «A Paixão de Cristo», há 21 anos, fizeram dele uma voz a ser escutada entre os exibidores. Fora isso, em 2017, ele voltou ao páreo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood com «O Herói de Hacksaw Ridge», uma reconstituição da II Guerra que custou US$ 40 milhões e faturou US$ 180 milhões. Ou seja, como realizador ele dá lucro, e muito. Os números voltam a endossar a sua conta corrente no arranque americano de «Flight Risk – Voo de Alto Risco». A produção ficou no topo das bilheteiras na sua estreia nos EUA, ao faturar US$ 11 milhões. O carisma de Wahlberg foi um chamariz, sobretudo pelo inusitado do público vê-lo com um desprezível criminoso. Até o supracitado Dignam parece um Lorde perto deste novo personagem de Mark Wahlberg.


Apoiado numa banda sonora taquicardia do compositor carioca Antônio Pinto, «Flight Risk – Voo de Alto Risco» é uma proposta despretensiosa de Mel Gibson com os códigos da ação. O tom austero dos seus filmes autorais do passado são preteridos em nome de uma estética ligeira (por vezes, carente de maior acabamento formal) na qual o desempenho de Michelle Dockery como protagonista é um trunfo. Embora o público do filão se dirija a esta iguaria atraído por Mark Wahlberg, é Michelle Dockery quem salva a pátria, numa estrutura dramatúrgica de peripécias contínuas (e claustrofobia) fotografada por Johnny Derango.

Mel Gibson apostou em enquadramentos nervosos ao acompanhar a cilada na qual a agente federal Madelyn Harris (papel de Dockery) cai, em pleno ar, sobre as rochosas montanhas do Alasca, ao acompanhar o transporte de Winston (um inspirado Topher Grace), uma testemunha, com ligações à máfia, que irá depor. A armadilha é o avião em si, pois o piloto, interpretado por um caricato Wahlberg, almeja matar os seus tripulantes. Os seus planos transformam a embarcação numa claustrofóbica arena (aérea), de múltiplos twist´s no argumento escrito por Jared Rosenberg. A montagem de Steven Rosenblum assegura o tom ideal de panela de pressão que a longa-metragem tenta construir e manter, sem deixar de lado um debate sobre integridade no cumprimento do dever. Madelyn possui fantasmas no seu passado. Proteger uma testemunha em perigo é uma forma de exorcizá-los, num contingente federal de corrupção. Nesse contexto, a figura desprezível do aviador que Wahlberg compõe é um tratado perfeito de mesquinhez e pura maldade nas alturas.

Título original: Flight Risk Realização: Mel Gibson Elenco: Mark Wahlberg, Michelle Dockery, Topher Grace Duração: 91 min. EUA, 2025



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