A 19 de Novembro de 1987, um pequeno abalo sísmico de natureza moral percorreu os alicerces da sociedade portuguesa. Elena Anna Staller, deputada italiana, irrompeu pelo Palácio de São Bento adentro e, com um gesto tão simples quanto radical, expôs os seios aos deputados e às câmaras de televisão (à época ainda só a RTP). Nos dias que se seguiram, tanto no parlamento como em cafés e salas de estar, pouco mais se comentava. A Nação debatia-se entre o escândalo e o fascínio. Como consequência, mesmo quem nunca tivesse visto um filme para adultos, passou a saber de cor o nome da que viria a ser a actriz pornográfica mais famosa de sempre: a Cicciolina. Este tipo de performance disruptiva e propagandística foi a marca de Riccardo Schicchi, o cérebro por trás da agência Diva Futura que dá título à estreia cinematográfica de Giulia Louise Steigerwalt. O filme não inclui o já lendário episódio português, mas oferece-nos um périplo pelos bastidores da agência e vida das suas maiores estrelas, da génese nos anos 70 até à morte do seu criador. A narrativa é inspirada nas memórias de Debora Attanasio (personificada aqui por Barbara Ronchi), secretária de Schicchi e autora do livro “Non dite alla mamma che faccio la segretaria”, que ainda não mereceu tradução portuguesa.
O Rei do hard — assim é apresentado Schicchi (Pietro Castellitto) — surge-nos como um homem franzino, diabético e ternurento, que nutre uma devoção quase religiosa pelos corpos femininos. Desde cedo iniciado pelo pai nas artes do voyeurismo e da pornografia em papel, sonha com uma revolução: fazer filmes pornográficos belos, com alma hippie e espírito libertário. O seu lema é claro: “Amoral, mas jamais imoral.” Encontra em Ilona Staller (Lidija Kordic) a musa e cúmplice ideal. Juntos, criam o programa de rádio “Voulez-vous coucher avec moi?”, que se torna um êxito graças à desarmante franqueza com que falam sobre sexo. Desta plataforma radiofónica nasce a agência Diva Futura, que ambiciona algo mais do que apenas gerir carreiras — quer moldar pornostars com a mesma precisão com que Hollywood forja ícones. E consegue. Para além da própria Cicciolina, Diva Futura lança duas figuras incontornáveis da pornografia mundial: Moana Pozzi (Denise Capezza) e Éva Henger (Tesa Litvan). Moana, de longe a mais prolífica, protagoniza cerca de uma centena de filmes e atinge vendas superiores a um milhão de cassetes — números que a consagram como a quinta-essência da pornostar. Mas Moana ambicionava mais: escrevia livros (ainda que autoeditados), participava em debates, e chegou mesmo a candidatar-se à Câmara de Roma. Fora das câmaras, era uma mulher segura, articulada, com desejo de legitimidade cultural e social. Nunca, contudo, alcançaria o fulgor político ou artístico de Cicciolina, e talvez por culpa do próprio Schicchi. Enquanto Moana se manteve fiel à Diva Futura, Cicciolina, co-proprietária da agência, construiu pontes mais largas, incluindo um casamento com o artista plástico Jeff Koons cujo nome – talvez por razões legais – é omitido no filme. Koons é um artista cimeiro do mundo da arte com obras nos principais museus mundiais e a serem vendidas por largos milhões de euros e eternizou a relação com Cicciolina na série “Made in Heaven” (1991), onde esculturas e pinturas hiper-realistas exibem o casal em cenas eróticas explícitas — e asseguraram à ex-actriz porno um lugar perpétuo na História da Arte Contemporânea. Por último, mais discreta, mas ainda relevante, Éva Henger — a Miss Teen húngara 1989 — transitou com relativa fluidez para fora do universo pornográfico. Continua presente na televisão italiana, fez cinema convencional e chegou até a obter um pequeno papel no filme “Gangs de Nova Iorque” (2002), de Martin Scorsese. A sua ligação com Schicchi, com quem casou duas vezes e teve filhos, é apresentada como a mais íntima, embora também a mais ambígua.

Mas se a matéria-prima é rica, a transposição para o ecrã nem sempre acompanha. As interpretações são, na sua generalidade, competentes — com destaque para Castellitto, que se entrega ao papel com uma candura algo a la Roberto Benigni. No entanto, o retrato das personagens reais peca por diluição. Cicciolina e Éva, mulheres de determinação glacial e inteligência afiada, surgem como figuras frágeis, emocionalmente confusas e em constante busca de protecção. Moana, cuja aura nos remete para uma Lauren Bacall em versão pós-moderna, é representada como uma espécie de Veronica Lake hesitante. O olhar desafiante, a energia solar, a fome de palco — tudo parece atenuado em nome de uma sensibilidade melosa e algo anémica. Schicchi, por seu turno, é romantizado até à exaustão, mais tonto que transgressor, mais santo que estratega. A secretária-autora funciona como voz off e fio condutor, mas a sua proximidade emocional ao retratado transforma o que poderia ser um estudo complexo numa hagiografia suavemente embalada, numa “puff piece” travestida de cinebiografia. A realização de Giulia Louise Steigerwalt pouco ajuda a contrariar esse tom. O filme mergulha num caldo telenovelesco que alterna entre o cor-de-rosa e o sentimentalismo, com saltos temporais mal encadeados e ritmo errático. Esta indecisão narrativa compromete a compreensão da evolução das personagens e da própria indústria que se propõe retratar. E isso é pena, pois os anos abordados — das décadas de 70 a 2000 — representam uma verdadeira mutação antropológica do consumo erótico.

Nos anos 70, deu-se um esboroamento dos limites entre cinema convencional e pornográfico e surgem as primeiras estrelas. Os filmes porno obedeciam aos mesmos critérios narrativos do restante cinema e eram, igualmente, apresentados em sala. Mas a necessidade de uma sala de projecção provocava uma exposição do espectador e o público geral retraía-se. Surge entretanto o VHS que permite a qualquer pessoa visualizar o filme discretamente em casa sem pejo social. É a época de ouro da indústria pornográfica que gera milhões e permite produções cada vez mais cuidadas. Entretanto, dá-se o advento da Internet e, se bem que os lucros aumentem, a estrutura muda radicalmente: os filmes deixam de ser longa-metragens para serem reduzidos a breves clips quase sempre sem um argumento ou estrutura narrativa complexa. Por outro lado a cada vez maior anonimidade do espectador e o fim de necessidade de grandes estruturas de produção fez aumentar a diversidade da oferta que vai explorando fantasias e fétiches cada vez mais de nicho. Como previu o crítico George Steiner: a total liberdade da imaginação erótica, sem censura, poderá levar facilmente à «total liberdade do sadismo» . E se o filme acena timidamente a esse abismo — num solilóquio pungente de Moana sobre a natureza das suas escolhas —, fá-lo de forma demasiado tímida para se assumir como verdadeiro alerta. “Diva Futura” é um filme que se pretende disruptivo, mas que acaba domesticado pela reverência ao seu protagonista. Com personagens históricas maiores do que a vida — Cicciolina, Moana, Éva — e um pano de fundo repleto de tensão política, sexual e mediática, a obra teria tudo para ser um estudo fascinante sobre poder, corpo, sexo e fama. Mas prefere o conforto da nostalgia ao desconforto da crítica. Ao invés de iluminar os bastidores de uma revolução cultural, contenta-se em embalsamar memórias queridas. O que se prometia como um mergulho no barroco mundo da pornografia italiana transforma-se, assim, numa carta de amor — ternurenta, sim, mas demasiado pudica.
Título original: Diva Futura Realização: Giulia Louise Steigerwalt Elenco: Pietro Castellitto, Barbara Ronchi, Denise Capezza, Tesa Litvan, Lidija Kordic Duração: 125 min. Itália, 2024
[Crítica publicada originalmente na Metropolis 118 – Maio 2025]

