“O sofrimento, brada-se a dobrar, a felicidade exprime-se em demasia, os amantes querem-se de perder o fôlego, a solidão sente-se como castigo, como desígnio de deuses. Não se alcançam, nunca. Daí a sua genialidade, daí o seu sentimento de perdição: negado mas sentido entre as quatro paredes, entre as ausências, entre o silêncio pesado. O inconfessável.”
(Paulo Gomes, “Porque correm os homossexuais» in Revista K, nº2, Novembro, 1990)

Com «Queer», uma adaptação da obra homónima de William Burroughs, Luca Guadagnino faz uma visita à sua própria juventude. Para compreender o «como» e o «porquê» temos primeiro que ir até aos anos 50 e beber da poção forte que foi a geração beatnik. Aqueles que viram, na sua infância, os horrores que a Humanidade engendrou durante a Segunda Guerra Mundial dão por si numa América de um alienado optimismo consumista, desejosa de esquecer o passado recente e construir um artificial conceito de normalidade. Como numa sitcom, a referência era a família feliz, com a mãe em casa e o pai no seu trabalho das nove às cinco, com os seus dois filhos, a viverem numa suburbana white picket fence house. Os seus sonhos deveriam ser apenas o sucesso profissional, uma cozinha equipada e o último modelo de automóvel familiar. Uma vida direita (straight), asséptica e previsível. Um grupo de jovens decidiu tomar o caminho oposto: saltar de olhos fechados para o poço das emoções humanas, da experimentação sexual e de substâncias, dos excessos, da vida errática e sem planos, da procura de novos caminhos e terras distantes. Este grupo, não coeso, começou por ser designado de beats, no sentido de batidos ou vencidos e, em breve, a imprensa acrescentou o sufixo russo nick para colar o movimento ao comunismo: o maior dos pecados na paranoica América pós-Guerra.

A figura cimeira deste movimento foi Jack Kerouak cuja obra magnaOn the road” (adaptada ao cinema, em 2012, por Walter Salles) se tornou na bíblia desta geração. Muito perto, em génio e amizade, estiveram Allen Ginsberg e Burroughs. Porém, este último, tinha algo que os outros não possuíam: uma imensa fortuna de família. Isto permitiu-lhe viajar para terras mais distantes e consumir heroína e demais estupefacientes num epopeico excesso em medida e duração. Nos seus poucos momentos de sobriedade escreve um tríptico auto-biográfico onde “Queer” se encaixa entre “Junkie” e “Naked Lunch”. Das três obrasé aquela onde o escritor mais se coloca a nu descrevendo o seu insanável desejo por sexo e substâncias que lhe permitissem fugir da realidade. No seu reconhecido estilo não-linear (que dificulta, em muito, a adaptação cinematográfica), o escritor produz o pequeno texto das suas aventuras no México, para onde tinha ido para fugir às autoridades americanas ao mesmo tempo que espera pelo julgamento de um homicídio que comete no país latino. Dois braços amparam-no no caminho: as drogas ilícitas e o jovem ex-militar Adelbert Lewis Marker que, no livro, toma o nome de Eugene Allerton.

Pensar em levar este pequeno e incompleto livro a tela é, antes de mais, ter de re-escrevê-lo e dar-lhe uma estrutura. Justin Kuritzkes, juntamente com o académico Oliver Harris, estudioso da obra do escritor americano, fazem-no de forma excelente; e criam um final original alinhavado com recurso a outras obras de Burroughs, mormente “The Yage Letters” (1963). Começamos na Cidade do México, onde o alter ego do autor, Bill Lee (David Craig) expande o seu inebriado dolce far niente entre o snack-bar Ship Ahoy, durante o dia; e bares e pensões duvidosas, durante a noite. Ficamos a conhecer a colorida fauna de expatriados norte-americanos que por lá se demoram e a permanente caça de novos parceiros sexuais que atormenta o protagonista. As figuras são-nos apresentadas num toca-e-foge apenas se demorando com Joe Guidry (Jason Schwartzman). As conversas são invariavelmente sobre sexo e drogas até que a atenção e desejo são transferidos para Eugene (Drew Starkey). Num jogo de gato e rato, de ilusões e percepções, a aproximação acontece com uma magnífica cena, onde as duas personagens assistem ao clássico «Orfeu» [«Orpheus»] (1950) de Jean Cocteau e o desejo de Lee torna-se visual com mãos fantasmagóricas que acariciam o rapaz. No capítulo segundo, o par embrenha-se pela América do Sul pondo a atenção nos caminhos tortuosos e dolorosos do síndrome de abstinência. Em modo de road-movie adentram pela floresta equatoriana, em busca da alucinatória bebida dos xamãs amazónicos ayahuasca. Depois de encontrarem a bizarra botânica americana Drª. Copper (Lesley Manville), que vive isolada com o seu jovem amante (o realizador argentino Lisandro Alonso), dá-se uma catadupa de cenas viscerais, entre o gore e o slime and grime, na linha do que o realizador já nos tinha dado a ver no seu remake de «Suspiria» (2018). Num epílogo deslumbrante, bastante mais onírico e poético, acompanhamos a progressão das alucinações de Lee, onde temos uma belíssima imagem de uma cobra-coral a comer a sua cauda, no formato de um oito invertido: um perfeito ouroboros, símbolo do eterno retorno, da morte e renascimento. E é nestes momentos que mais está patente a influência estética de «Os Sapatos Vermelhos» [«The Red Shoes»] (1948), tanto na paleta como no uso dos recursos estilísticos e performativos de Michael Powell e Emeric Pressburger, como declarou o realizador numa entrevista, em Junho de 2024, à cinecitanews.it. Nesse mesmo momento, Guadagnino alerta os futuros espectadores para as “muita cenas de sexo, bastante escandalosas”.

Estas cenas de sexo homossexual deverão ter sido bastante exigentes para Daniel Craig, um actor pouco dado a cenas eróticas ou nudez e que tinha sedimentado a sua imagem com a sua representação do epítome do homem heterossexual, o agente 007. Esta exigência de levar um actor para outros campos está presente em mais figuras do elenco. O muito WesAndersoniano Schwartzman está irreconhecível com uma imagem que se cola à do poeta Allen Ginsberg; assim como a transformação da muito contrita e aristocrática Manville numa versão safari da artista de performance Michèle Lamy, mulher do famoso estilista Rick Owens. É curioso igualmente notar que, pese embora muito tenha sido exigido a Craig e Starkey, em termos de erotismo e exposição, a nudez frontal (se bem que com recurso a próteses penianas) é deixada apenas para um actor menor.  O filme foi grande parte rodado nos egrégios estúdios da Cine Cità, com cenários (em tamanho real e em miniatura) da autoria de Stefano Baisi que, após aturada pesquisa dos locais reais, optou por uma certa artificialidade estética e sonial onde, por exemplo, colocou anacrónicos letreiros em néon que, com as suas diferentes gradações de cor, reflectiam os efeitos das drogas no protagonista. A par, nas cenas da floresta, filmadas in situ, há um uso propositado de luzes de estúdio. Estas opções, acrescida de um meticuloso framing, mise-en-scène e paleta, conferiram uma saturada teatralidade, entre o Barroco e Brescht, a lembrar «Querelle – Um Pacto com o Diabo» [«Querelle»] (1982) de Rainer Werner Fassbinder, cineasta de quem Guadagnino confessa ser grande admirador. Há que notar – e louvar – que não tendo sido o filme rodado no México, o realizador tenha fugido à tentação de usar o ridículo filtro amarelo-sépia que empesta o cinema desde que Steven Soderbergh o usou em «Traffic – Ninguém Sai Ileso» [«Traffic»] (2000).Mas é talvez na banda sonora que reside uma das principais chaves de interpretação e do porquê este ser um filme que remete à mocidade do realizador italiano.

Uma das interpretações que tem sido dada para a geração beat remete ao ritmo/batida pois a escrita deste movimento tem uma cadência muito específica e dissonante, próxima dos movimentos de jazz mais progressivo. Podemos ainda testemunhá-la nas várias gravações áudio que chegaram até nós tanto de Burroughs como demais escritores do grupo. Essa particular cadência foi bem conseguida na adaptação de «O Festim Nu» [«Naked Lunch»] (1991) por David Cronenberg, tanto visualmente como pelas composições de Howard Shore, como ainda pela elocução de Peter Weller no papel de Lee. Mas Guadagnino envolve o seu filme numa atmosfera musical que vai dos finais dos anos 80 a meados de 90 com artistas como Nirvana, New Order ou Prince. Esta escolha não foi, obviamente, inocente: o movimento beatnik encontrou eco nessa geração. Os ideais, que descrevo no início do texto, foram sempre, de certa forma, caros aos artistas e aos jovens pela sua rebeldia, experimentação e sentimento anti-stablishment; mas a tónica agora estava num sentido de derrota, de abatimento e de fim de um mundo. O grunge terá sido o apogeu desse malaise temporal.Para mais, o Burroughs septuagenário ressurgiu como uma espécie de deus vivo dos alternativos, párias e marginais, um sumo-pontífice do final dos tempos. Os artistas queriam a sua extrema-unção e procuravam-no para colaborações. Gus van Saint dá-lhe um papel em «No Trilho da Droga» [«Drugstore Cowboy»] (1989) e, claro, Cronenberg faz-lhe a mais grandiosa vénia com a adaptação do seu livro. Mas este sentimento Burroughsiano influi no espírito criativo da época: com David Lynch que dominou a televisão com o seu «Twin Peaks»; Wim Wenders com «Até ao Fim do Mundo» [«Until the End of the World»] (1991); Bruce LaBruce com «No Skin Of My Ass» (1991); Mike Leigh com «Nu» [«Naked»] (1993); e, de forma mais evidente, Gregg Araki na sua Teenage Apocalypse Trilogy (1993-97) que metamorfoseia a beat generation na The Doom Generation.  Quantos destes filmes terá o realizador italiano visto não poderemos confirmar, mas seguramente soube, com «Queer», captar o sentimento de uma determinada geração e vivência que foram as suas e que aqui tão intimamente transpôs.

Título original: Queer Realização: Luca Guadagnino Elenco: Daniel Craig, Jason Schwartzman, Daan de Wit Duração: 137 min. EUA/Itália, 2024

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