Será que houve encontro? O filme deixa-nos com aquele sabor de incerteza, mas nada que comprometa o seu desfecho — apenas a extensão do seu mistério. Contudo, não há como negar, nem tentaremos debater tal ponto, parece-nos quase um aforismo, algo exato: «C’est Pas Moi – Não Sou Eu» é um ensaio profundamente godardiano, mas Leos Carax é Carax, fora deste mundo e do outro. Por isso, o seu godardianismo soa-nos mais como uma distração, algo que desvia o espectador (paciente) da eventual dor da picada da injeção. A estranheza, podemos entendê-la como um substituto do suposto doloroso, é o que nos magnetiza, o que nos incentiva a penetrar nestes pensamentos de cama, neste corpo — o do realizador — sem vontade de combater o seu estado tedioso, um tédio prolongado e febril. E é desses pensamentos, múltiplos e transversais, que o tal aborrecimento adquire o seu estado de graça, o seu valor conceptual, como a televisão em ponto de “ruído branco” e a mão deste cineasta a surgir como uma sombra “esfomeada”, eclipsando a banalidade que essas imagens poderiam transmitir. Aliás, Carax, em 40 minutos e com diálogos partilhados com a sua criação, Monsieur Merde (Denis Lavant), apresenta-nos um embate direto contra a banalidade — seja ela estética, formal, moral ou até discursiva e perceptiva. Vivemos numa época de informação a rodos, de uma chuva torrencial de algoritmos e certezas. O que Carax nos oferece é uma distorção à tese da continuidade dessa mesma banalidade. Ora, por exemplo, a banalidade do mal, temperada com um toque arendtiano; as figuras do zeitgeist (Netanyahu não escapa à “condenação” de agente de ódio); o rodopio em torno de Hitler e a sua aura; e até a vítima convertida em peça desta depravação, Roman Polanski, que passa de “sobrevivente do Holocausto” a “monstro”. Depois, o chamado Olhar de Deus: um olhar puro, sem obsessão por ecrãs, por mais pequenos que sejam. A autenticidade do olhar, e como esse ato afeta a genuinidade das imagens. Falemos das imagens: elas pontuam Leos Carax, cercam-no, desafiam-no a falar de si. Há algo de autobiográfico em tudo isto, como uma confissão existencial sob a voz “romantismo moderno” de David Bowie (há uma oferenda de paz depois dos créditos, um respiro antes de as luzes se acenderem). É uma reflexão sobre o seu “eu”, sobre o “lugar dos pais mortos” que o cinema sempre assumiu ser, já o dizia, postumamente, o crítico Serge Daney. “C’est Pas Moi – Não Sou Eu” é um “bicho” vídeo-ensaísta sobre um mundo ao qual Carax não pertence, nem nunca pertenceu verdadeiramente. É um mundo que se procura mas nunca se encontra, que lamenta sem resposta certa a dar. Como chegámos a esta situação? À de todas as mediocridades que as telas projetam em nome do Cinema — ou melhor, da indústria “marvelesca”? Somos os piores espectadores, reconhecemo-lo e esmorecemos, porque “amamos” em demasia o zinco e nos aprisionamos à sua falsidade. Carax apenas incentiva a quebrar as correntes… sem fórmulas nem formatos. Viver o Cinema intensamente.

Título original: C’est Pas Moi Realização: Leos Carax Elenco: Leos Carax, Denis Lavant, Nastya Golubeva Carax Duração: 41 min. França, 2024

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