Para um cinéfilo militante que acompanha os grandes nomes e movimentos que marcaram de forma inequívoca a História Mundial do Cinema, salientar a obra da cineasta Kira Muratova (1934-2018) constitui um pequeno grande passo rumo ao justo reconhecimento daquela que por diversas circunstâncias foi durante anos encostada a uma relativa zona de sombra. Tarde de mais para a sua valorização? Nem por isso! Resistir passa por ser a senha e a palavra de ordem dos que não se conformam com a normalização redutora da mediocridade institucionalizada nem se contentam com a efémera espuma dos dias. E essa resistência não se restringiu ou diz respeito a um só país, um só sistema ou a um só período histórico. Mas não se pense que o almejado lugar ao Sol escapou durante anos a esta mulher filha de comunistas, pai russo e mãe romena, nascida em Soroca (cidade do então Reino da Roménia com forte presença da comunidade judaica, integrada hoje na República da Moldávia), fazendo dela um caso isolado. Na verdade, a prateleira e a censura a que muitos criadores foram submetidos nos mais diferentes quadrantes geográficos incidiram sobre as mais diversas produções, fílmicas ou outras, e as razões subjacentes acabavam sempre por apresentar um denominador comum, serem obras não-alinhadas com os cânones oficiais. Em países como Portugal podiam mesmo ser consideradas actividades subversivas contra os interesses do Estado. E se alguém disso fosse acusado, nem filmes estaria autorizado a realizar, quanto mais protestar contra a sua interdição.

Dito isto, passemos ao que importa aqui destacar a favor da realizadora, argumentista e actriz, Kira Muratova: a estreia no circuito comercial português, pela mão da MIDAS FILMES, de «Korotkie Vstrechi» («Breves Encontros»), 1967, e «Dolgie Provody» («O Longo Adeus»), 1971, duas obras emblemáticas do início da sua carreira a solo.

Nesta crítica iremos dar conta das qualidades da primeira longa-metragem citada, ficando para um artigo independente a análise da segunda. De facto, primeiro devemos considerar «Breves Encontros» como um excelente cartão-de-visita para melhor compreender o modelo de produção e as opções de linguagem integradas numa perspectiva de renovação que acompanhava na época a consolidação das novas vagas, sobretudo europeias, que desde os anos cinquenta do século XX vinham assumindo posições críticas contra um certo conformismo que se ia instalando em alguns sectores da vida cultural. Novas Vagas cujo núcleo se encontrava em França, mas que se fazia sentir igualmente em países como a Hungria, Polónia, Checoslováquia e a vastíssima diversidade da URSS, onde podemos e devemos lembrar outra mulher de armas do cinema de autor, Larisa Chepitko, junto com o seu marido Elem Klimov, sem esquecer, entre outros, o genial Andrei Tarkovsky. Na verdade, a produção da Rússia e da União Soviética destacou-se numa era de “degelo” político e cultural que permitiu abrir portas a novas frentes e vertentes cinematográficas. Preocupações que estavam presentes na produção soviética defendida e adoptada por Kira Muratova nos Estúdios de Cinema de Odessa (Ucrânia), para onde se mudou depois da sua passagem pela famosa VGIK, Universidade Estatal Russa de Cinematografia, a mais prestigiada escola de cinema de Moscovo, onde seguramente a realizadora viu muitos dos filmes da produção nacional e internacional, desde os clássicos de sempre aos que melhor representavam essa nova geração, uma nova vanguarda que então despontava e dava cartas nos caminhos cruzados da sétima arte.


Como se depreende de uma expressão como «Breves Encontros», a realizadora usou uma complexa série de sequências para delinear uma planificação que articula o presente com um passado próximo, consubstanciada por flashbacks e pelo mosaico fragmentado da montagem. Flagrantes da vida real de um grupo particular de personagens: uma mulher, que encontramos logo de início encerrada nas quatro paredes de uma existência solitária e urbana, mas relativamente confortável devido ao poder que o estatuto de funcionária estatal lhe confere na inspecção e aprovação de obras públicas, Valentina Ivanovna, conhecida pelo diminutivo Valya (interpretada pela própria Kira Muratova), a sua empregada doméstica, jovem oriunda do campo por razões que serão gradualmente desvendadas e que mais parece ausente sem o estar da equação existencial dum improvável colectivo, a sedutora Nadya (Nina Ruslanova), e o marido de Valya, o muito enérgico e assertivo Maksim (interpretado pelo célebre actor, compositor, cantor e poeta russo Vladimir Vysotskiy), geólogo que ama o ar livre e não gosta das grilhetas nem do conformismo burocrático e pequeno-burguês, quase sempre exibindo comportamentos situados entre o assumir das coisas práticas e a rebeldia expressa através de um comportamento algo anárquico que aqui e além amplifica no dedilhar de uma guitarra e na interpretação de canções (com voz rouca que faz lembrar um Tom Waits), cujas letras não são sempre para ouvidos sensíveis e conservadores. Valya irá procurar sem grande sucesso domesticar o ímpeto do companheiro, quase sempre ausente de casa. Nadya, saberemos pouco a pouco, apaixonou-se por Maksim quando este numa das suas viagens de prospecção mineral passou pela sua aldeia. Maksim podia resistir ao fulgor da sensualidade de Nadya, porque na prática ele era a personagem mais livre e descomprometida, mas acabará por cair nas malhas do jogo de sedução urdido pela jovem “kolkoziana”. Triângulo amoroso do qual o espectador será o primeiro a identificar os perigos gerados pelos vértices afiados de uma sinuosa geometria emocional. Na verdade, os potenciais segredos e desejos recalcados de Nadya (jovem mulher não comprometida a não ser com o seu próprio destino e, por isso mesmo, a personagem mais desprotegida no interior da sua ilusória liberdade) assombram-lhe a memória, a sua vontade de agir, mas não mudam o rumo da sua existência, mesmo perante a inequívoca proximidade da revelação final. De certo modo, o argumento de «Breves Encontros» foi escrito para dar a volta ao que parecia anunciado nas estrelas. No fundo, para nos fazer aceitar a maior das subversões, a que se materializa quando a solução para o equilíbrio futuro dos que faziam parte do grupo passa pela ocultação (fica no ar a dúvida se consciente ou fortuita) do modo de ser e estar que deu corpo e alma ao fluxo e refluxo emocional de Valya, Nadya e Maksim.


Tudo isto saiu reforçado pela belíssima Direcção de Fotografia (responsabilidade de Gennadi Karyuk), que num deslumbrante preto e branco manifesta a sua precisa adequação na área do subjectivo e objectivo que prevalece nas diferentes escalas de planos onde por vezes a globalidade do enquadramento e da superfície do ecrã serve para compor imagens em que diversas componentes da acção se cruzam em simultâneo. Há igualmente uma procura incessante de uma estética que joga com os efeitos da luz natural combinados com a luz artificial, uma atmosfera onde os actores estão no pleno domínio das suas faculdades e aptidões dramáticas, e que na filigrana dos pormenores polariza o significado dado ao que se quer dar a ver, ou não.

Pode um filme romântico ser uma obra empolgante, mas amarga e crua? Sim, pode, e até ganha com essa opção. «Breves Encontros» está aí para o provar, com alguma necessidade de contextualização séria e sem demagogias e com muito poucas rugas, desde 1967.

Título original: Korotkie Vstrechi Realização Kira Muratova Elenco: Nina Ruslanova, Vladimir Vysotskiy, Kira Muratova Duração: 96 min. URSS, 1967

Argumento: Kira Muratova e Leonid Jukhovitski Director de Fotografia: Gennady Karyuk Som: Igor Skinder Música: Oleg Karavaichuk Montagem: O. Kharakova Direcção Artística: Aleksandra Kanardova e Oleg Perederi Guarda-Roupa: L. Tolstykh Produção: Odessa Film Studios Distribuição Midas Filmes

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