Quatro anos depois da sua primeira realização a solo, o vibrante «Korotkie Vstrechi» («Breves Encontros»), 1967, e após um interregno algo forçado, a cineasta Kira Muratova avançou para a história de uma mãe e do seu filho, Yevgeniya Vasilyevna (Zinaida Sharko) e Sasha Ustinov (Oleg Vladimirsky). Duas figuras e personalidades encurraladas num círculo vicioso de relações, que ora as empurra para a vertigem de comportamentos de um qualquer contexto familiar, ora as afasta para uma deriva periférica aos mais estáveis valores sentimentais onde o perigo reside na possibilidade iminente da mulher/mãe descarrilar para o descontrolo emocional, quer ele se manifeste no plano privado ou no profissional. Descontrolo apaziguado com dificuldade e quase sempre pela pressão de acontecimentos exteriores cujas faúlhas provocadas pelo atrito pairam no ar que se respira. Na sua relativa independência, Sasha nem sempre se mostra capaz de as evitar. De certa maneira demonstra falta de maturidade no modo como se relaciona com a progenitora, nomeadamente quando afasta a atenção da mãe sempre que esta congemina a propósito do seu futuro. Iremos perceber mais para a frente que Yevgeniya não se limita apenas a querer moldar a vida do filho adolescente. Procura de algum modo influenciar o adulto que se adivinha em Sasha, de preferência com ele por perto. Há um efeito de espelho no seu zelo materno que a empurra para a introspecção feita de memórias passadas e de conflitos que ficaram disseminados no caminho por ambos percorrido. Zonas cinzentas de incompatibilidades e antagonismos, provavelmente mal interiorizados e por consequência mal resolvidos. Para que a situação se pudesse perfilar ainda com maior complexidade do que aquela que já seria previsível, precisamente para a narrativa não cair na armadilha do que se apresenta ou não como óbvio e expectável nas vicissitudes da vida quotidiana de cada um, a realizadora e a argumentista Natalia Reazantseva acrescentaram ao binómio mãe/filho a figura de um marido/pai ausente. O homem de quem se fala numa espécie de limbo de abstracção, onde sobressai a descrição das suas actividades enquanto professor universitário. Personagem que paira como uma ameaça fantasmática capaz de, por si só, provocar significativas rupturas entre as duas personagens protagonistas de «Dolgie Provody» («O Longo Adeus»), 1971, o filme que aqui e agora nos vai ocupar a melhor atenção.


Na verdade, o pai será visto fugazmente numa fotografia ao lado de Sasha e, para acentuar o lado virtual da sua imagem, descobrimos o seu rosto através de um diapositivo projectado na parede do quarto do filho. Mesmo assim, apenas numa altura em que a principal ruptura e o principal conflito dramático de «O Longo Adeus» atingem o seu ponto mais crítico, ou seja, quando os dois polos entre os quais se articula a acção experimentam uma cada vez maior distância um do outro. De facto, a vida do rapaz e da mulher/mãe parece ser movida por uma inicial força centrífuga agregadora de sentimentos, que será contrariada por uma inesperada força centrípeta, reveladora de uma amarga impotência face ao controlo do destino que no fundo impele a mãe a aceitar a sua sorte e a sua previsível solidão. Tudo isto quando o filho lhe diz que quer ir viver com o pai. Há nessa altura uma magnífica sequência em que Yevgeniya recorda um episódio relativamente feliz do passado vivido com o homem com quem partilhou mais do que um simples e passageiro amor, na esperança que Sasha seja o fiel mensageiro de uma história que se mantivera secreta para assim restabelecer com o pai o elo que porventura se encontra irremediavelmente perdido com a mãe.

Mais uma vez estamos aqui perante o retrato desassombrado da mulher no contexto da conjuntura social e económica da Ucrânia deprimida e deprimente. Tal como víramos em «Breves Encontros», faz-se igualmente o retrato de uma personagem representativa de uma camada social que, de forma generosa, podíamos classificar de remediada e instalada no conforto da nomenclatura burocrática. No caso do filme anterior, o retrato dessa condição feminina referia-se ao sistema socio-político propondo nas entrelinhas das relações quotidianas outras formas de ser e estar. Na prática, apresentava a relação entre as personagens de Valya e Nadya (ver crítica a «Breves Encontros») numa dialéctica situada entre a pequena-burguesia e o proletariado rural, exercício de puro cinema proposto num quadro de experimentação estética que se apoiava na fragmentação estruturada da narrativa, mantendo um fio condutor que conseguia agregar com êxito os pontos essenciais da proposta ficcional.

Em «O Longo Adeus», Kira Muratova preferiu ao primado da concentração fragmentada a dispersão estrutural, nomeadamente como forma de ir ao encontro do ponto de equilíbrio que melhor desenvolvesse a noção do desequilíbrio afectivo subjacente aos encontros e desencontros que nos mostram como sempre foi difícil a relação e por fim a separação de mãe e filho. Em ambos os casos irá prevalecer a sensação de que as mulheres em causa não conseguiram superar as dores de parto provocadas pelo corte umbilical com a realidade que num determinado momento chegaram a desejar como certa, segura e mais ou menos imutável, apesar das sistemáticas circunvoluções e revoluções da esfera pessoal e sentimental. Numa perspectiva mais vasta, quiseram ignorar as próprias contradições da sociedade em que viviam. De facto, os que proibiram estes filmes não estavam a dormir. Regressando a «O Longo Adeus», Yevgeniya e Sasha esbarram por fim contra a dificuldade maior de aceitar a mudança. Sobretudo não sobrevivem aos abismos desse lugar cruel e desencantado, o impasse e o vazio (de que a sequência final da festa constitui um exemplo sublime), vórtice existencial onde acabam por cair e cujas feridas decorrentes da queda só podem ser cicatrizadas por um demorado processo interior que se inscreve num longo, mas mesmo muito longo adeus.

Titulo Original: Dolgie Provody Realização: Kira Muratova Elenco: Zinaida Sharko , Oleg Vladimirsky, Yuriy Kayurov, Svetlana Kabanova Duração: 95 min. URSS, 1971

Argumento: Natalia Reazantseva Director de Fotografia: Gennady Karyuk Som: Igor Skinder Música: Oleg Karavaichuk Montagem: Valentina Oleinik Direcção Artística: Enrique Rodríguez Guarda-Roupa: Natalya Akimova Produção: Odessa Film Studios Distribuição: Midas Filmes

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