Em «Amor» Michael Haneke faz o favor de nos relembrar: sim, o que estamos a ver são nada menos que “24 mentiras por segundo” – mas é possível que, tendo assente a noção absoluta de encenação, consigamos entrar no seu universo. Um universo que tem tudo, afinal, de nosso.
É perante o efeito de verdade que «Amor», a Palma de Ouro deste ano, que conseguimos perceber um discurso que Haneke tem vindo a amadurecer através da sua obra nas passadas décadas – um discurso acusado amiúde de frio, misantropo e imoral. Não consigo, por exemplo, deixar de pensar na capa e destaque dos Cahiers du Cinéma em novembro de 2012, que realçaram a “monstruosidade” de Haneke. Ao mesmo tempo, em dezembro e a propósito da lista dos 10 melhores filmes do ano, a mesma publicação quis justificar a sua ausência – falando da ausência de uma liberdade criativa ou da imposição de uma moral. Ora se há cineasta que insiste em alimentar a dúvida, em questionar persistentemente o poder manipulador da imagem ou em trocar-nos as voltas quanto aos nossos códigos de valores esse realizador chama-se Michael Haneke. Portanto se poderá haver a imposição ela virá, sempre, do próprio espectador.
E isto é imoralidade? Não. «Amor» é, para mim, a prova absoluta que Haneke é, também, um desses incompreendidos autores humanistas, desassossegados com a complexidade do ser humano, parecendo assim querer demonstrar-nos que o ideal não existe – o mundo é como o mundo é. Não há por isso “imagens proibidas” e nada fica “caché” – querer não filmar a morte, a violência, o medo e o poder é querer não filmar a vida, é, também, querer uma censura no cinema.
Neste filme, acompanhamos a trajetória decadente de um casal de ex-professores de música octogenários – duas estrelas absolutas do cinema europeu, Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, que merecem o campo / contra-campo mais célebre de 2012. São eles que definem o labirinto doméstico que Haneke filma – partindo da claustrofobia dos corredores e do tempo que se vive quando se está preso numa cama. E o olhar, ainda que “objetivo” (e sempre “mentiroso”), toca pela primeira vez a dimensão do espiritual e do invisível (através dos quadros que filma, do tempo, do espaço e, sobretudo, da música…) – como se Haneke estivesse, através das suas imagens, a querer uma relação transcendental através do concreto.
Não vamos ter medo de o dizer: «Amor» é, perto de pouquíssimos outros, o melhor filme do ano. Revê-lo é querer reviver a ideia de absoluto vazio que tememos. Mas o cinema não foi feito para nos deixar confortáveis debaixo dos lençóis. Flávio Gonçalves
Título original: Amour Realização: Michael Haneke Elenco: Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Rita Blanco. Duração: 127 min França/Alemanha/Áustria, 2012
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº4, Dezembro 2012]
https://youtu.be/BCDa2ffdC-w