Hoje em cartaz na HBO Max, a minissérie de código postal brasileiro «Máscaras de Oxigénio (Não) Cairão Automaticamente» traz um dos diálogos mais sagazes da indústria audiovisual de 2025: “Os filmes de terror não têm heróis; eles têm sobreviventes”. Ninguém corre de cutelo em riste, qual assassinos de giallo, nesta teledramaturgia, que também não comporta criaturas monstruosas. O perigo real e imediato nesse caso é o avanço da SIDA, entre o fim dos anos 1980 e início dos 1990, quando o AZT era ainda uma promessa. O Mal, com M maiúsculo, é o preconceito e o seu gémeo, o ódio. A estreia dessa narrativa se articula com outros bons filmes com o HIV em seu radar, como «Romería», de Carla Simón, e «O Olhar Misterioso do Flamingo» («La Misteriosa Mirada Del Flamenco»), de Diego Céspedes, ambos advindos de Cannes. Eles se instauram mais no âmbito do drama, a falarem de pautas identitárias. Já o visceral «Alpha» se articula de forma mais frontal com os dizeres da supracitada produção do Brasil, ao dar voz à luta por sobrevivência num contexto de infecção intravenosa. É o indício de uma onda de expresaões artísticas com atenções voltadas para uma doença cujo pior sintoma era – e ainda é – a intolerância.
Quem reliza «Alpha» – muito bem, aliás – é a francesa Julia Ducournau, que foi a Cannes, em concurso pela Palma de Ouro de 2025, com essa joia. O prémio máximo da Croisette foi dado a ela em 2021 por «Titane», um dos mais potentes e radicais exercícios de criatividade cinematográfica da década – e de há muito tempo. É um body horror, uma vertente física do género que dá á maldade mítica – e mística – protagonismo. Ela volta ao registo nesse trabalho de franca afetividade que dividiu as opiniões em Cannes.
Como visto em «Titane», as mortes e as vísceras estão no ecrã. O novo exercício narrativo de Julia Ducournau mantém a sua linha autoral de tramas ligadas ao organismo, a artérias e órgãos que pulsam – e falham. Se no seu escandaloso sucesso de «Titane» havia um drama sobre paternidade (com um bombeiro que injetava testosterona), a sua atual película fala de “frátria” e “mátria”, ou seja, versa sobre irmãos e mães.
A única unanimidade em relação ao que se vê em «Alpha», no seu jorro imagético devastador, é o desempenho da jovem atriz Mélissa Boros. Ela interpreta uma adolescente de 13 anos que descobre o seu desejo sexual, sob a recorrente tentação de um colega de escola, num momento em que uma doença transmitida pelo sangue destrói multidões, sobretudo dependentes químicos. Essa tal peste se chama Vento Vermelho e a sua representação ganha contornos poéticos na direção de arte. É difícil não pensar na SIDA ao ver como o contágio se deflagra, por meio de agulhas infectadas.

Golshifteh Farahani e Tahar Rahim interpretam um casal de irmãos. A médica vivida pela estrela iraniana, chamada só de Maman, precisa ajudar o seu mano Amin (Rahim, impecável em sua atuação). Ele está com os sintomas do tal Vento Vermelho. A sua carne endurece e gangrena, a meio de uma fraqueza crónica. Alpha (Mélissa) testemunha do seu calvário ao mesmo tempo em que corre o risco de estar contaminada após ter feito uma tatuagem sem a higiene adequada.
Laureado em Cannes com o Grand Prix Technique (dado à sua fotografia e a seu design de som), «Alpha» ampliou o prestígio de Julia Ducournau como diretora autora. Revelada com o périplo de uma estudante de Veterinária acometida por uma vontade incontinente de comer carne de pessoas, descrito em «Grave» («Raw», 2016), Ducournau é parisiense, tem 41 anos e observa o corpo como sendo um lugar de revelações e de transcendência, a julgar pelo processo revolucionário que as suas protagonistas passam a partir de um gatilho dos seus organismos.
A jovem vegana que vira canibal em «Grave» passa a atacar pessoas por culpa de uma fome incontornável. Já no seu filme avassalador, «Titane», uma mulher na casa dos 20 e tantos anos engravida após uma relação sexual sem preservativo. Seria difícil encontrar contracetivos que dessem conta de seu parceiro: um… carro.
O que Julia Ducournau tem feito em seu cinema é uma aula de biologia existencialista.
Título original: Alpha Realização: Julia Ducournau Elenco: Mélissa Boros, Golshifteh Farahani, Tahar Rahim Duração: 128 min. País: França, Bélgica, 2025

