Misteriosos são os caminhos de Deus e ainda mais secretos são os de cada um dos cardeais reunidos no Estado do Vaticano por ocasião da eleição de um novo Papa. No filme «Conclave», 2024, realizado pelo alemão Edward Berger, com argumento de Peter Straughan baseado no livro homónimo de Robert Harris, assistimos a uma complexa cerimónia em que os protagonistas são altos representantes da igreja católica apostólica romana, que juntos constituem o colégio cardinalício, cuja importância individual antecede a do cargo supremo que pertence ao sumo pontífice.
No chamado conclave, os ditos cardeais votam de forma igualmente secreta no nome daquele que, segundo a sua consciência e a sua leitura da realidade circundante, material e espiritual, pode melhor representar a continuidade de um poder que será depositado nas mãos de um novo Papa, na sequência da morte do seu antecessor. Dir-se-ia que desta equação, não obstante a multiplicação dos diversos pontos de vista que uma obra cinematográfica pressupõe, nada mais seria expectável do que um relato circunstanciado e a rotineira contagem dos votos. Todavia, no domínio da ficção cinematográfica, as coisas fiam mais fino. Deste modo, para não fazer esmorecer a nossa atenção e para nos empolgar nos 120 minutos que dura a narrativa desta produção do Reino Unido e EUA, o projecto investiu numa área que habitualmente se reserva para obras cujo pulsar dramático se apoia nos meandros do mistério puro e duro.
Thriller político-religioso, ou melhor, de contornos religiosos, com clara incidência na visão prosaica e muito material da competência e aptidões dos principais cardeais visados, «Conclave» destaca de entre os membros do colégio cardinalício o deveras conciliador e responsável pela organização do conclave, o cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), o “liberal” cardeal Bellini (Stanley Tucci), o reaccionário cardeal Tedesco (Sergio Castellitto), o evasivo cardeal Tremblay (John Lithgow), o africano (de início aparentemente bem posicionado para suceder na cadeira papal) cardeal Adeyemi (Lucian Msamati) e por fim um mais do que improvável candidato, com um percurso controverso e arriscado por países como o Afeganistão, o latino cardeal Benitez (Carlos Diehz). Escusado será dizer que esta última personagem, nascida no México, caída não literalmente, mas quase do céu, irá desempenhar um papel decisivo que logo se adivinha pela maneira como acontece a sua particular introdução em cena. Enfim, nesse campo a realização não deixa muito mistério por desvendar, apenas precisamos de aguardar pela altura certa para sabermos o que então não fora dito. Na verdade, como se irá revelar nos derradeiros minutos do filme, há naquele cardeal não apenas uma irreverência, mas um mistério maior que atinge uma instituição onde a perspectiva masculina prevalece sobre o olhar feminino. Identidade de olhar que aqui será assumido de forma crítica e contundente pela irmã Agnes, religiosa que assiste a uma distância obrigatória ao desenrolar e disseminar das ondas de choque provocadas por numerosas contradições, armadilhas, intrigas, compromissos e arranjinhos urdidos durante o conclave. É Isabella Rossellini quem cumpre essa função de espectadora atenta, movimentando-se nos bastidores de forma bem activa, mesmo quando a sua presença se manifesta através da circulação não de uma mulher de corpo inteiro mas de alguém que desempenha o papel de sombra. Diríamos, uma alma penada, quase sem voz, só com rosto e força de vontade para corrigir o que manifestamente qualquer pessoa séria e responsável classificaria como o mal-estar instalado nas hostes superiores da igreja católica.
No contexto global da estrutura fílmica, Edward Berger soube aproveitar com grande eficácia os espaços fechados e minimalistas dos aposentos em que os cardeais se instalam no seu repouso diário e onde muito do que se conspira e negoceia acaba por se concretizar. Por outro lado, não restam dúvidas sobre a boa utilização do espaço cenografado da Capela Sistina, onde a economia de ângulos e a escolha das objectivas, assim como das respectivas escalas, não apresentam nem encerram desnecessários artifícios visuais. Esta opção contribui para credibilizar de modo sereno o que se passa não apenas entre as quatro paredes do conclave mas igualmente nos restantes e diversificados espaços do Vaticano. Trata-se da forma escolhida para nos fazer sentir a clausura e percebermos melhor até onde podem ir as ameaças que pairam de fora para dentro, sobretudo quando uma bomba explode no exterior comprometendo nomeadamente a “ressonância” natural provocada pela dialéctica entre o silêncio do conclave e a justa audição das palavras que regem os diversos passos a que a eleição de um novo Papa obedece.
Destaque ainda para a paleta de cores, crepuscular, podemos dizer outonal, que vinca a solenidade e austeridade de uma cerimónia onde o rigor e verdade deveriam imperar e que acaba com uma visão redentora e algo subversiva dos caminhos não de Deus mas daqueles que representam os previsíveis desafios da Igreja num mundo cada vez mais afastado do divino.
Título original: Conclave Realização: Edward Berger Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Lucian Msamati, Isabella Rossellini Duração: 120 min. Reino Unido/Estados Unidos, 2024