Nomeações da Academia de Hollywood para «Ainda Estou Aqui» consagram a resistência latino-americana.
Desde que o maestro de Minas Gerais Ary Barroso (1903-1964) concorreu ao Oscar de Melhor Canção, em 1945, pela música “Rio de Janeiro” (um duo com Ned Washington) na trilha sonora de «Brasil» (1944), o cinema de língua portuguesa egresso da América do Sul sonha em ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Esse sonho pode se tornar realidade, enfim, em 2025, quando o audiovisual brasileiro recebeu três indicações à premiação americana pelo sucesso de bilheteira «Ainda Estou Aqui», de Walter Salles. No dia 2 de março, no Dolby Theatre, a expectativa de vitória pode-se concretizar e dar ao cineasta do Rio de Janeiro a devida consagração. A lotar salas em Portugal, onde estreou há uma semana, a adaptação do romance homónimo de Marcelo Rubens Paiva (autor de “Feliz Ano Velho”) disputa os troféus de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, numa coroação de sua estrela, Fernanda Torres. No último dia 5, ela foi agraciada com o Globo de Ouro de Interpretação Dramática. Na sua pátria natal, a longa, que põe Fernanda no papel da advogada e ativista Eunice Paiva (1932-2018), vendeu cerca de 3,7 milhões de ingressos. A sua receita mundial beira US$ 14 milhões.
Há 39 anos, Fernanda foi premiada no Festival de Cannes pelo drama «Eu Sei Que Vou Te Amar» (1986), de Arnaldo Jabor (1940-2022). Ganhou num empate com a alemã Barbara Sukowa («Rosa Luxemburgo») e foi contracenar com sir Anthony Hopkins em «Homem de Guerra», de Sergio Toledo, lançado em 1991. Na sua nação, participou de outros títulos marcantes, entre eles «O Que É Isso, Companheiro?», nomeado ao Urso de Ouro… e ao Oscar… em 1998.
Quem vê Fernanda recriar as pelejas éticas de Eunice Paiva, sob a meticulosa direção de Salles, sai do cinema tocado (e pede bis). Protagonista de marcos do teatro (“A Casa dos Budas Ditosos”) e da TV («Os Normais» e «Tapas e Beijos»), bem-sucedida ainda no âmbito da prosa, em romances (“Fim” e “A Glória E Seu Cortejo de Horrores”), ela vem sendo elogiada em todos os festivais por onde a saga da Sra. Paiva passou. Tudo começou pelo de Veneza, onde o argumento de Heitor Lorega e Murilo Hauser foi premiado, em setembro passado.
Depois, a longa brilhou em projeções em San Sebastián, Nova York, Toronto e Marraquexe, além da Mostra de São Paulo, onde ganhou o Prémio de Júri Popular. No dia 4 de janeiro, a Associação de Críticos do Rio de Janeiro (ACCRJ) elegeu a narrativa de Salles para o pódio do Top Ten de 2024. Classificou-o como seu Filme do Ano, em especial por conta de uma devastadora sequência com a mãe de Torres, Fernanda Montenegro.
Trata-se da maior dama do teatro brasileiro. Há 26 anos, ela esteve lado a lado com Salles no primeiro momento do realizador no Oscar, quando seu aclamado «Central do Brasil» (ganhador do Urso de Prata na Berlinale de 1998) foi disputar a estatueta designada a produções não americanas (então chamado best foreign film). O troféu de então acabou nas mãos de «A Vida É Bela» (Itália), do ator Roberto Benigni. Naquela data, na mesma cerimónia, a saga da escritora de cartas Dora rendeu uma nomeação ao prémio de Melhor Atriz à linda atuação de Montenegro, antes contemplada com o Urso de Prata alemão. Só que, no fim dos anos 1990, Fernandona foi preterida na Academia hollywoodiana em favor de Gwyneth Paltrow (concorrendo por «A Paixão de Shakespeare»).

Em «Ainda Estou Aqui», Fernanda Montenegro e a filha dividem o papel de Eunice, que enfrentou a ditadura para descobrir o paradeiro do marido, o ex-deputado e engenheiro Rubens (vivido por um inspirado Selton Mello). Durante os Anos de Chumbo, no começo da década de 1970, ela vê o seu companheiro ser levado à força para depor, sem nunca regressar. Dali para diante, ela se empenha em dissipar névoas da tortura e das práticas do desaparecimento dos ditos “subversivos”, numa trajetória heroica. A montagem espartana de Affonso Gonçalves narra essa luta em saltos no tempo, com direito a uma entrada de F. Montenegro numa sequência de doer na alma. Maria Carlota Bruno («No Intenso Agora») e Rodrigo Teixeira («A Vida Invisível») assinam os créditos de produtor desse blockbuster sul-americano, que vem lotando as salas de cinema em França e Lisboa.
Durante os anos 1990, Torres protagonizou duas das mais elogiadas ficções de Salles (ambas rodadas em duo com Daniela Thomas): «Terra Estrangeira», de 1995 (hoje na Netflix) e «O Primeiro Dia», indicado ao Leopardo de Ouro de 1998. Waltinho (como o cineasta é chamado) passou 12 anos sem rodar longas de ficção depois do lançamento de «Na Estrada» («On The Road», 2012). Nesse período, lançou o documentário «Jia Zhangke, um Homem de Fenyang» (2014) e rodou curtas («Quando a Terra Treme»).

Jurado em Cannes em 2002, quando David Lynch (1946-2025) presidiu o júri (e coroou «O Pianista»), Walter Salles voltou a rondar a Academia em 2005, com seu «Diários de Motocicleta». Esteve por lá quando o compositor uruguaio Jorge Drexler cantarolou “Al Otro Lado Del Río” ao receber a estatueta de Melhor Canção pela letra dedicada ao jovem Che Guevara (1928-1967).
Naquele momento, Salles foi essencial para o movimento conhecido como “Nouvelle Vague Latino-Americana” em festivais internacionais. Era um tempo em que a Pangeia da colonização ibérica passava por uma revisão da sua forma de narrar. «Central do Brasil» deflagrou essa nueva hola. Na sequência, a Argentina (com Lucrecia Martel, Pablo Trapero e Daniel Burman) estourou mundialmente, em especial após a consagração de «O Filho da Noiva» (2011), de Juan José Campanella. O México veio nessa mesma esteira, com os «Amores Perros» (2000), de Alejandro González Iñárritu. A boa recepção global a «O Invasor» no Festival de Sundance de 2002 e ao supracitado «Cidade de Deus» (produzido por Salles), foi essencial para esse redefinição do continente nos grandes ecrãs.
O seu estonteante «Ainda Estou Aqui» aplaca uma carência histórica do cinema brasileiro em relação a filmes de ficção que narrem as brutalidades estatais cometidas entre 1964 e 1985, quando os generais tomaram o governo do seu país e suspenderam a democracia. Os argentinos viveram situação similar, igualmente sangrenta, e a exorcizaram, no cinema, com «A História Oficial», de 1985, e «Argentina, 1985», de 2022, com direito a outros sucessos no caminho. O Brasil reagiu cinematograficamente ao avanço dos comandantes de farda verde oliva no ato do golpe com «O Desafio» (1965), de Paulo Cézar Saraceni (1933-2012). Uma nova reação de peso brotaria das telas em 1982, com direito a uma indicação ao Urso de Ouro de Berlim e 1,3 milhão de ingressos vendidos em circuito: «Pra Frente, Brasil», de Roberto Farias (1932-2018). Cerca de 15 anos depois, Bruno Barreto tomou as telas de assalto com o já citado «O Que É Isso, Companheiro?». Fora isso, desde os anos 1980, a realizadora Lucia Murat fez dos Anos de Chumbo o assunto de seus dramas, incluindo «Quase 2 Irmãos» (2005) e o recente «O Mensageiro» (2023), e o ator Wagner Moura arriscou-se (bem) na realização relembrando o período em «Marighella» (2019). No documentário, «Cabra Marcada Para Morrer», de Eduardo Coutinho (1933-2014), e toda a obra de Silvio Da-Rin («Hécules 56») expuseram toda a violência das Forças Armadas nos 21 anos em que elas governaram um dos maiores territórios da América do Sul. Apesar desse sortimento, faltava uma catarse… sobretudo de retumbância popular, que fosse capaz de reverberar pelo mundo. Coube a Walter Salles (do belíssimo «Abril Despedaçado») resolver a questão. Que o Oscar reconheça os seus feitos e o seu talento.
«Ainda Estou Aqui» em exibição nos Cinemas