Num panorama internacional assolado por conflitos militares de grande envergadura e ameaças persistentes de uma nova ordem mundial, até parece “normal”, não o sendo, que não se fale das convulsões passadas, com reflexos no presente, provocadas por movimentos nacionalistas que, no caso do filme «À Son Image» («À Sua Imagem»), 2024, se relacionam com as actividades militantes da chamada Frente de Libertação Nacional da Córsega. Fundada a 5 de Maio de 1976, a FLNC (Fronte di Liberazione Naziunale Corsu) apresentou como objectivo declarado combater a presença colonial francesa na Córsega. Deste modo, uma das suas ambições passa pela conquista da independência daquela ilha do Mediterrâneo, que continua a ser uma das regiões mais desfavorecidas da França, muito dependente dos pacotes de férias e dos negócios relacionados com os habituais ciclos de veraneio. Mas há quem do lado nacionalista reivindique maior autonomia sem colocar a questão da independência e, naturalmente, essa diferença gerou ao longo dos anos contradições e graves atritos entre os cidadãos corsos que ali nasceram e ali querem permanecer, mantendo-se hoje diferentes perspectivas que estão longe de se poderem considerar apaziguadas ou adormecidas. Por isso, nada normal ignorar o que por lá se passa e passou.

Dito isto, foi com justificado interesse e alguma expectativa que visionei «À Sua Imagem», de Thierry de Peretti, actor, encenador e realizador nascido a 19 de Novembro de 1970 em Ajaccio, capital da Córsega do Sul. Na verdade, deste autor multifacetado, aqui na pele de um cineasta, esperava uma coisa simples mas basilar para a consolidação e credibilização da narrativa proposta, ou seja, que ele fosse capaz de falar com conhecimento de causa dos acontecimentos vividos num período que abarca cerca de duas décadas e onde se inclui o eclodir das movimentações e acções revolucionárias da FLNC. Por fim, vê-lo fazer o que lhe competia com a devida consciência das causas que a organização defendia e dos ancestrais conflitos identitários que não viram a luz do dia apenas com a criação da FLNC, antes pelo contrário. Não nos esqueçamos que entre 1794 e 1796 foi constituído um estado independente sob protecção britânica que se designou Reino da Córsega, cuja bandeira usava o símbolo iconográfico da cabeça negra de um homem, representação gráfica de um mouro com uma bandana branca, precisamente a imagem que os nacionalistas em pleno século vinte adoptaram para identificar o seu combate. Esse reino de curta duração foi apenas um de entre múltiplos episódios históricos relevantes cujos reflexos se podem encontrar na História mais ampla, não só da Córsega mas do Continente Europeu e até do Novo Mundo. Já agora, a este propósito, importa recordar: não foi em Ajaccio que nasceu Napoleão Bonaparte? E não foi na Córsega, no ano de 1755, que se publicou uma das primeiras constituições democráticas, documento que serviu de inspiração aos mentores da Constituição dos Estados Unidos da América em 1787?

Na estrutura do argumento de “À Sua Imagem” percebemos bem cedo que o fulgor vincadamente nacionalista irá viver paredes meias e pairar de forma assombrada sobre o percurso pessoal e colectivo da protagonista, a fotojornalista Antonia (Clara-Maria Laredo), e sobre a intimidade das suas relações amorosas com um militante da FLNC, Pascal (Louis Starace). Todavia, sabemos ainda mais cedo que ela sofreu um acidente mortal e que, do ponto de vista estrutural, o que iremos ver será um longo flashback que nos convoca para os passos seguros, mas também para os desencontrados, da sua vida anterior. Tudo narrado intermitentemente por alguém que só perto do final iremos identificar. Uma opção discutível, mas que no fundo resulta a favor de um certo distanciamento cronológico do que podia ser um caminho ficcional contaminado pelo mero discurso panfletário.

Digamos que num momento inicial o projecto podia seguir duas grandes vias: empurrar a personagem de Antonia para a vertigem da luta que o seu companheiro assumira de forma muito explícita, facto que o irá condenar a sucessivas prisões, ou fazer de Antonia uma mulher que, mesmo no seio de um relacionamento com laivos de solidariedade militante, procura ser livre e usar o seu espírito independente para criar um espaço próprio e autónomo. Mais uma vez, saliente-se, sem, no entanto, renegar os motivos que estão por detrás das razões da FLNC. A realização optou pela segunda hipótese, deixando assim alguma margem de manobra ao espectador para se concentrar na composição da actriz e na figura cada vez mais singular e adulta de Antonia que, de forma gradual e calculada, assume riscos cada vez maiores, como se estes fossem desafios aos seus próprios limites profissionais e sobretudo pessoais. Este aspecto será reforçado, nomeadamente, quando insiste em viajar para Belgrado com o objectivo de cobrir, contra a vontade dos pais e sem qualquer apoio do seu empregador, aquilo que na altura se podia classificar a brutal carnificina em curso na Guerra da Bósnia. Lá longe, numa geografia que era o inverso da ensolarada ilha que a viu crescer, procura algo que aparentemente não encontrava na Córsega. Porém, desencantada com o horror da guerra e a sensação de impotência cravada na alma, regressa ao quotidiano da sua ilha, onde não demorará muito a constatar o violento despertar de lutas internas e fratricidas cujos contornos desenhados a negro se fazem notar na crescente radicalização de algumas acções dos independentistas (justificando, aliás, algum resfriamento no modo como elas passaram a ser organizadas e encaradas).  

Na prática, Thierry de Peretti (que interpreta no filme a personagem de um sacerdote cujas dúvidas se manifestam sobre o modo de alcançar uma “pátria” desejada, mas aparentemente adiada) quis realizar um filme em que as perguntas não correspondessem necessariamente a respostas de falsa ou demagógica eloquência. De certa maneira, conseguiu atingir esse ponto de fusão entre aquilo que se deixa ver e ouvir e o que não pode nem deve ser revelado, a saber, as matérias que mal ou bem permanecem na sombra quando se lida com organizações e vidas clandestinas. E no processo pegou numa rapariga cujo portfolio fotográfico e percurso existencial pudesse ser a prova de que, mesmo quando se usam filtros, há sempre uma realidade que não se apaga. Uma verdade que por fim vem ao de cima, mesmo quando se vai em frente e não se finta a curva do destino.

Por tudo isto e por outros atributos que o filme demonstra, «À Sua Imagem» [«In His Own Image»], que passou pela Quinzena dos Cineastas do Festival de Cannes de 2024, merece sem dúvida uma visão atenta.

Título original: À son image Título internacional: In His Own Image Realização: Thierry de Peretti Elenco: Clara-Maria Laredo, Louis Starace, Marc-Antonu Mozziconacci Duração: 110 min. França, 2024

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