A premissa de «A Ama de Cabo Verde» é, ou parece ser, simples. Cléo (Louise Mauroy-Panzani) tem seis anos e perdeu a mãe quando era muito pequena. Gloria (Ilça Moreno Zego), natural de Cabo Verde, é a ama que a criou desde bebé. Um certo dia, Gloria tem de regressar à sua Ilha, para junto dos seus filhos, que ficaram lá com a avó. Antes da partida, Cléo pede a Gloria que prometa que vão voltar a ver-se o mais depressa possível e a ama convida-a a passar o verão em Cabo Verde, com a sua família.

Marie Amachoukeli-Barsacq realiza uma história que escreveu, em conjunto com Pauline Guéna, e que lhe é muito próxima, uma vez que se inspirou na sua própria infância. Dedicado à sua ama Laurinda, que a criou até aos seis anos, este filme reflete o contexto de muitas mulheres que têm de abandonar o seu país e a sua família para serem amas de crianças europeias, de forma a poderem ganhar dinheiro para alimentar os seus filhos ou, simplesmente, dar vida e cor aos seus sonhos no país de origem.

Esta aproximação realista à temática vai um pouco mais longe. De acordo com uma entrevista que deu num festival, a realizadora francesa confessa que procurou as suas protagonistas na rua, sem recorrer a atrizes profissionais. E ainda bem que o fez. A fisionomia e o olhar sobre o mundo da pequena Louise deixaram a realizadora rendida de imediato e Ilça é uma ama na vida real. Ambas conquistam-nos na primeira cena e embalam-nos numa rede de ternura e cumplicidade que nunca mais desaparece.


Na mesma entrevista, a realizadora confessa que o maior desafio foi filmar em Cabo Verde, uma vez que teve de viajar com todo o equipamento necessário, optando por filmar apenas com uma câmara, e as animações que inteligentemente vão surgindo no meio da trama, como separadores. O resultado é como um bolo feito com poucos ingredientes e muito amor: simplesmente delicioso.

Num misto de admiração, enternecimento e tristeza, vamos percebendo o quão importante é para Gloria ficar na sua ilha e como o regresso a Paris está completamente comprometido depois de a sua filha – ainda adolescente – ter sido mãe ou do seu projeto de futuro necessitar de supervisão. Mas muitos outros pormenores vão sendo entregues, como a forma como se vive nesta ilha, a maneira como os filhos reagem à ausência da mãe e de como a pequena Cleo parece ser uma ameaça para os que ficaram na ilha.

A câmara deixa de ser intrusiva para atores não profissionais e torna-se uma “janela” para os acompanharmos enquanto espectadores, seguindo todos os seus passos mas sobretudo o seu crescimento enquanto pessoas. Cleo pressente que vai “perder” todo o contexto de amor e segurança que conheceu até ali; Gloria sabe que vai ter de se separar de uma filha, não biológica mas de coração.
Mais do que deixar-nos presenciar tudo isto, «A Ama de Cabo Verde» é uma oportunidade para experimentarmos. Para nos colocarmos na pele destas pessoas e sentirmos o laço que as une, para reaprendermos o valor das pequenas coisas e a beleza daquilo que é simples. Para voltarmos a trazer para dentro de nós o valor das relações humanas e a importância das emoções básicas que, muitas vezes, nos fazem errar porque escondem feridas maiores. «A Ama de Cabo Verde» é sobre a perda, mas também, e acima de tudo, sobre o acrescento do amor no processo do verdadeiro crescimento de cada um de nós.

Título Original: Àma Gloria Realização: Marie Amachoukeli Elenco: Louise Mauroy-Panzani, Ilça Moreno Zego Duração: 84 min. França, 2023

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº108, Julho 2024]

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