Depois de quinze anos em que não teve autorização para viajar para fora do seu país, desta vez o iraniano Jafar Panahi desembarcou em Cannes… e ganhou a Palma de Ouro! Há qualquer coisa de fábula política nesta conjugação de eventos, com os mais variados e perturbantes ecos simbólicos na actualidade geo-política. Seja como for, vale a pena dizê-lo sem ceder à lógica banalmente panfletária de muita “informação” contemporânea, antes sublinhando a dimensão especificamente cinematográfica do trabalho de tão admirável cineasta.
«Foi Só Um Acidente», o filme consagrado pelo júri presidido por Juliette Binoche, reitera o valor de um intransigente realismo, nascido de uma “colagem” formal e emocional às suas personagens e às convulsões das suas histórias. O retrato do “simples acidente” feito por Panahi distingue-se, por isso, pelo poder de uma aproximação concisa e contundente de um Irão de muitas feridas interiores, ao mesmo tempo preservando o gosto de olhar para cada ser humano como uma entidade única, radical, sem equivalente.
Lembremos, por isso, que não há “um” realismo. Da magia melodramática de Griffith até à precisão descritiva de Jonathan Glazer, a história do cinema está pontuada por muitos realismos. Na sua fascinante pluralidade, cada um deles arrisca confrontar-se com o desafio maior da realidade circundante: não reproduzi-la por qualquer automatismo mágico (só mesmo alguns profissionais de televisão conseguem acreditar, ou fingir que acreditam, em tal proeza), antes pensar cinematograficamente o que significa olhar para essa realidade e transfigurá-la em narrativa de imagens e sons.
A lista dos concorrentes à Palma de Ouro de 2025 foi especialmente rica como montra de tal pluralidade — da memória da escritora Goliarda Sapienza revisitada pelo italiano Mario Martone em Fuori, até à visão dantesca da repressão estalinista em Two Prosecutors do ucraniano Sergei Loznitsa, passando pela metódica observação social de Saeed Roustayi, outro iraniano, em Woman and Child. Isto sem esquecer alguns títulos das secções paralelas, incluindo Homebound, do indiano Neeraj Ghaywan, ou A Pale View of Hills, do japonês Kei Ichikawa.
Em boa verdade, o filme mais experimental, e também mais “futurista” visto na Côte d’Azur terá sido Magirama, de Abel Gance, projectado na secção Cannes Classics — tem data de 1956, mas ninguém disse que a história do cinema é linear.
[Crítica originalmente publicada na revista Metropolis nº 119, Junho 2025]

