Ainda estávamos de barriga cheia com o recente «O Segundo Acto» e empanturrámo-nos com o delicioso «O Acidente de Piano» onde Quentin Dupieux confirma o seu percurso de provocador sistemático, sempre disposto a expor as contradições e os absurdos do nosso tempo. O filme acompanha Magalie, ou “Magaloche”, uma influenciadora digital que sofre de analgésia congénita, uma rara condição de insensibilidade à dor. Inspirada pela polémica e imbecilizante série american da MTV «Jackass», transforma esse traço físico numa arma de notoriedade, Magalie constrói uma carreira exibindo façanhas grotescas e chocantes cada vez mais extremas para satisfazer o apetite insaciável da atenção online. O título surge de forma literal e metafórica: após um acidente de piano, acompanhada pelo seu fiel e subserviente assistente (Jérôme Commandeur) refugia-se num chalet de montanha para repousar, mas logo a calma é invadida por uma jornalista (Sandrine Kiberlain) em busca de uma entrevista exclusiva, fãs que confundem admiração com posse e a própria incapacidade da protagonista de escapar ao ciclo de exposição. Dupieux afirmou em entrevistas que não pretende julgar o público, nem destilar misantropia gratuita; o que procura é libertar-se das ideias negativas que o assombram, transformando-as em objectos fílmicos que possam, simultaneamente, divertir e incomodar. O pior, segundo ele, seria a indiferença, e é precisamente essa recusa da neutralidade que marca o filme.

A interpretação de Adèle Exarchopoulos é exemplar. A actriz entrega-se a um papel extremo, que a obriga a atravessar o grotesco sem rede, despojando-se de qualquer aura glamorosa e encarnando uma figura física e psicologicamente desconfortável. Magalie é uma personagem difícil de amar e é esse o seu trunfo: não há apelo sentimental, mas sim choque, excesso, riso nervoso, confronto directo. O público é desafiado a seguir uma protagonista cuja única lógica é a do espectáculo total da exibição ilimitada. Os personagens secundários, em contrapartida, são esboçados como arquétipos: a jornalista oportunista, os fãs obsessivos, o assistente resignado. Funcionam como instrumentos simbólicos mais do que como seres complexos, o que deixa o filme, por vezes, algo desequilibrado, sobretudo para quem procura densidade psicológica em todos os vértices narrativos. Mas tomemos essas personagens como caricaturas ou figuras-tipo de teatro medieval. Isto porque, no geral, o que Dupieux nos oferece é uma sátira à sociedade digital, ao culto da visibilidade e à transformação da dor em conteúdo. A insensibilidade física de Magalie é metáfora clara da insensibilidade moral de uma época que exige sempre mais espectáculo, mais choque, mais degradação para que algo seja notado. A jornalista que a persegue encarna o jornalismo de escândalo, os fãs revelam o vazio do voyeurismo, e o chalé isolado funciona como palco de um microcosmo social em colapso. O humor é negro, corrosivo e, por vezes, arrasta-se até à exaustão: a repetição de situações grotescas, a dilatação de cenas que parecem prolongar-se apenas para gerar desconforto, que mais do que uma afirmação estilística, afirmam-se como recursos deliberados.

Mas atenção: «O Acidente de Piano» não é uma mera repetição. O filme apresenta uma abordagem estética peculiar, sobretudo no tratamento do som e da música. Pela primeira vez, Dupieux decidiu utilizar gravações de piano não electrónico, explorando o timbre de um instrumento avariado, cujas cordas em falta produzem sons quebrados e desarmónicos. Esse material, captado e usado quase cru, cria uma textura sonora instável que acompanha o desconforto narrativo. No clímax, surge ainda a colaboração de Chilly Gonzales, que introduz uma peça poética inesperada, oferecendo uma pausa reflexiva antes do desfecho. Esse contraste entre ruído, dissonância e lirismo pontual amplia a experiência sensorial e dá ao filme uma dimensão quase musical, ainda que nunca consoladora. Há ainda que notar a coragem do realizador em colocar o dedo na ferida de uma cultura digital que se alimenta da degradação; a entrega absoluta de Exarchopoulos, que transforma uma caricatura potencial em algo hipnótico; a atmosfera construída pelo isolamento na montanha, pela neve, pelo silêncio saturado de tensão; e a originalidade relativa da metáfora central, que consegue ser contemporânea sem parecer moralista. Sente-se a evolução de Dupieux em relação ao seu filme anterior, «Le Deuxième Acte» («O Segundo Acto»), que se debruçava sobre a própria ideia de representação e simulacro cinematográfico: se aí a crítica estava virada para o interior do cinema e da ficção, aqui desloca-se para a realidade social das redes e da exposição digital, criando uma espécie de díptico involuntário sobre os diferentes palcos da performance contemporânea. Embora não atinja a intensidade perturbadora de «Le Daim» («100% Camurça», 2019) ou a secura brilhante de «Yannick» (2023), trata-se de uma obra sólida que cristaliza o universo “dupieuxiano”. É um filme que não consola, não oferece catarse, não dá lições morais: limita-se a expor um espelho deformado no qual o espectador se vê, queira-se ou não lidar com essa realidade. E é precisamente nesse desconforto que reside a sua eficácia.
Título original: L’accident de piano Título internacional: The Piano Accident Realização: Quentin Dupieux Elenco: Adèle Exarchopoulos, Sandrine Kiberlain, Karim Leklou, Jérôme Commandeur Duração: 92 min. França, 2025
[Crítica originalmente publicada na revista Metropolis nº122, Setembro 2025]
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