Estreado em Lisboa recentemente, «Têm de vir vê-la» é a prova dum cinema espanhol vivo e de qualidade. A presença do realizador Jonas Trueba na apresentação do filme constituiu a ocasião ideal para uma conversa agradável com a Metropolis sobre o filme, o estilo de realização singular, a forma de pensar toda a produção e as possibilidades disponíveis para realizar o filme, a direção de atores e a relação de confiança entre todos na pequena equipa com a qual fizeram este trabalho admirável, rodado em continuidade entre o Inverno de 2020 e a primavera de 2021.

A pandemia marcou a todos e em todo o mundo. Era inevitável fazer um trabalho que incluísse este contexto? Como nasceu o projeto de fazer este filme?
JONAS TRUEBA:
O estranho teria sido não reagir à pandemia, ou seja, imaginar um cinema onde todos os cineastas teriam fingido que não se tinha passado nada. No nosso caso, queremos fazer um cinema muito ligado à nossa vida quotidiana, ao nosso mundo quotidiano. E, de repente, o nosso mundo quotidiano estava absolutamente condicionado pela pandemia, pelo covid 19. Assim, digamos que a pandemia acaba fazendo parte do filme, mas não era minha intenção fazer um trabalho sobre isso. Porém, ela está presente, forma parte da atmosfera,

Mas a ideia inicial do filme já existia?
JONAS TRUEBA: Diria que sim, que o filme nasce dum sentimento de estranheza, que é anterior à pandemia. Estava já presente. Mas a pandemia vem agudizar, intensificar este sentimento de estranheza que muitos tinham, em relação ao mundo, ou ao modo de vida ou aos sítios onde vivemos. Também a estranheza dos amigos, da idade, das pessoas próximas, ou entes queridos, que começamos a sentir mais distantes. Aí senti que tinha de fazer um filme que à vinha a pensar fazer antes disto tudo que aconteceu. E também senti que tinha de a fazer duma forma muito prática e muito rápida. A rodagem durou 8 dias, e o filme foi rodado em dois momentos: um primeiro momento no Inverno, e outro momento na primavera. Tal como se vê no filme! Quando no filme se anuncia que passaram 6 meses, isso corresponde também a uma passagem do tempo na rodagem desse período. Filmámos a primeira parte em três noites. Despedimo-nos sem saber como iria ser a continuação do filme. Disse simplesmente à equipa e aos atores que nos voltaríamos a encontrar na Primavera e que depois se via o que se iria fazer. Tinha esta ideia que teria de haver uma elipse, um hiato temporal suficiente.

Incluindo para os próprios atores, no sentido dramatúrgico?
JONAS TRUEBA: Sim, quando tu sentes que passaram seis meses, é mais autêntico. Houve uma separação de toda a equipa durante seis meses, uma incerteza que era verdadeira, era real. Gosto muito que os meus filmes estejam muito ligados à experiência real da rodagem, à experiência vital daquilo que o filme está a contar. Quando pudemos trabalhamos sempre assim, combinamos as duas facetas.

Ao visionar o filme, fica a ideia duma forma de trabalhar muito íntima, entre o realizador e os atores, incluindo a própria equipa técnica que é pequena, não é?
JONAS TRUEBA: Trabalhar com uma equipa pequena é mais prático e também é mais real! Para os atores também, não têm o peso de trabalhar com uma “máquina” de produção demasiado grande. Cada vez suporto menos esta arrogância do cinema, ou esta espécie de obrigatoriedade segundo a qual o cinema tem de ser grande, tem de ser caro, pesado, importante. Prefiro pensar que trabalhamos duma forma mais humilde e mais próxima duma escala à qual sinto mais próximo, e mais bem representado. Uma sensação de ser pequeno, pois creio que se ajusta mais à realidade.

Tenéis que venir a verla - Jonas Trueba
Jonas Trueba

Escreve o argumento dos seus filmes com essa mentalidade?
JONAS TRUEBA: Sim, para mim o importante quando começo a escrever é pensar também na produção, não é escrever em abstrato, antes é ser consciente das minhas circunstâncias. Creio que o cinema tem também a ver com saber ler as circunstâncias, o contexto social, o momento no teu país, o que tens e o que não tens à tua disposição. Costumo dizer que fazemos um cinema possível: a ideia de fazer cinema com o que podes trabalhar. Não com aquilo que não se pode fazer. Hoje, estávamos a passear por Lisboa e vimos um pouco da rodagem dum filme de João Rosas, cineasta da minha geração, admiro muito o seu trabalho e pudemos sentir uma irmandade e uma escala parecida aquela com a qual trabalho, em Espanha. Este cinema mais pequeno em termos de escala é mais importante para uma comunidade cinéfila, para uma “internacional” cinéfila que tantos filmes muito maiores em que trabalham mais pessoas e exigem mais investimento e que, no final, não têm a mesma importância.

Porém este filme não é o chamado “filme de festival”.
JONAS TRUEBA: Gosto que me digas isso, creio que outro perigo do cinema contemporâneo são os festivais, e o “ghetto” dos festivais. É muito perigoso. Existe muita gente a fazer um cinema para festivais e eu não suporto isso. Participo nos festivais, pois não tenho alternativa, pois é o sistema que existe. Não gosto da ideia de competir, mas sobretudo não gosto da fórmula do festival, codificada. É perigoso! Procuro um cinema que possa chegar a qualquer espetador, com um pouco de sensibilidade.

O filme, basicamente está dividido em 2 momentos: a noite na cidade e o dia no campo. Qual a razão por esta opção? Foi por uma questão de economia de meios ou economia narrativa?
JONAS TRUEBA: Talvez as duas coisas. Para mim, a narrativa está ligada aos meios que dispomos. É um cinema materialista, ou possibilista. Pensar na produção e no desenho da produção e escrever o argumento pensando no lado prático, também. Como vamos fazer isto? O que temos à disposição? Penso no filme em termos de produção, estar consciente da produção é o primeiro momento.

É interessante: a vossa geração já pensa de outra forma?
JONAS TRUEBA: Porque começamos a fazer cinema com a crise de 2008, fazemos o cinema possível por obrigação. Entendemos que tínhamos de mudar a forma de pensar e fazer cinema.

A composição dos 4 protagonistas é exemplar (desde o primeiro momento, as expressões, a naturalidade, o entendimento entre todos… Como foi trabalhar com estes 4 atores e atrizes (já tinhas trabalhado com um dos casais em filmes anteriores – os atores Itsaso Arana e Vito Sanz, trabalhaste com a Irene Escolar, uma atriz que é muito conhecida em Espanha) Ensaiaram muito antes de filmar? Como foi?
JONAS TRUEBA: Não ensaiámos muito, porém, tivemos uma conversa prévia de muita confiança! Com três dos atores já tinha trabalhado, muitas vezes, antes (com Vito, Itsaso e Francesco Carril) e temos muita cumplicidade. A Irene entendeu bem a nossa forma de trabalhar: consiste em gerar, entre nós, uma cumplicidade, desde as primeiras conversas, eles sentem que constroem o filme comigo. Participam, um pouco, na construção do filme. Partilho com eles! É um trabalho coletivo. Não lhes dei um argumento escrito, conto-lhes o filme, escrevo umas notas, umas impressões. Tento transmitir-lhes as sensações que tenho e que inspiraram o filme, que essas sensações também sejam deles, que as façam deles. E trabalhamos duma forma muito rápida e intuitiva. São atores muito bons. E também tento adaptar-me a eles, à sua personalidade. Para mim, é muito mais importante eles como pessoas do que eles como personagens. Da mesma forma que procuro trabalhar com a produção, com o contexto claro, também trabalho com a ideia dos atores que vão fazer o filme. Primeiro nasce o desejo de trabalhar com os atores, e a partir deles construo as personagens, ou seja, não existe uma personagem em abstrato e depois é escolhido o ator. Tem tudo a ver com a mentalidade de trabalhar com o que existe, com o real. O ator, o dinheiro, os locais de rodagem, o desenho de produção são tudo coisas que estão previamente escolhidas e o filme, de alguma maneira, se forma a partir de todos estes elementos concretos, que estão escolhidos, no início.

Tenéis que venir a verla

Durante a pandemia muitos casais se separaram, outros se uniram. Como foi, pessoalmente, a sua vida, durante a pandemia? Como isso determinou o rumo do filme?
JONAS TRUEBA: Pessoalmente, a pandemia foi um período triste, perdemos bons amigos, que morreram de covid 19, por isso foi um choque. Passei uns meses um pouco em choque. Depois, senti que tinha de recuperar a vitalidade, e a melhor forma é fazer um filme. É uma forma de nos ligarmos à vida, de intensificar, de sair da tristeza. Um filme para vencer a minha própria melancolia, para dar ânimo, inspirar a própria vida. A pandemia influenciou a tristeza e também o fato de estar em casa lendo o livro de Peter Sloterdijk, ouvir música…

A música é muito importante no filme.
JONAS TRUEBA: O filme está construído com base na música. É o mesmo que dizia em relação aos atores, à produção, também pensei na música enquanto escrevia o argumento. A música ajuda-me a encontrar a estrutura do filme, o ritmo do filme. O tom do filme. E também os atores, as leituras que faço… é como se tivesses, em cima da mesa, muitos elementos, e tivesses que juntá-los numa forma cinematográfica. A nossa forma de trabalhar é esta. Queria falar dos casais e dos amigos, queria falar dum amor, dos casais que estão unidos pelo amor, um pouco gasto, pela vida.

O contraste entre a vida na cidade (correr) e no campo (andar) é evidente. Fale-nos das diferenças entre Cidade e Campo?
JONAS TRUEBA: Bem o que se vê no filme não é bem o campo, mas é uma cidade afastada. O importante é que há uma ironia, porque o que se vê é uma natureza muito tímida, um pouco ridícula, até um pouco cómico. O ritmo entre os dois espaços é muito parecido. Tudo isso é revelado com um pouco de humor. Muitos amigos meus fizeram esta opção de vida: sair da grande cidade, ir para os arredores.

Como foi a rodagem? Quais as maiores dificuldades da rodagem do filme?
JONAS TRUEBA: Foi uma rodagem muito tranquila, simples e rápida. Foi mais fácil e agradável. A única dificuldade foi encontrar a casa do casal que vai viver fora da cidade. Uma dificuldade da réperage, encontrar um espaço, a localização ideal. Mas assim que a encontramos, correu tudo muito bem, foi uma rodagem muito feliz. Oxalá que a rodagem de todos os filmes corresse assim.

Tudo isso depende muito do grau de confiança entre todos?
JONAS TRUEBA: Trabalhamos juntos há mais de dez anos – a equipa técnica. E os atores são, quase sempre, os mesmos. Há uma sensação de família, de equipa como uma banda rock. Tocamos juntos há muitos anos!

As conversas entre os dois casais estão muito bem escritas e funcionam com muita naturalidade. Estava tudo escrito e os planos todos pensados?
JONAS TRUEBA: Não estava tudo escrito. Existe algo escrito. Mas não há um argumento formal, no início, vou escrevendo, dia a dia. Tenho uma ideia geral.

Pensa nos planos, também?
JONAS TRUEBA: Sim, mas também, dia-a-dia. Gosto muito que o filme se escreva na rodagem, não muito antes. Tenho uma ideia e uma intuição. Gosto de trabalhar com uma sensação de frescura, mas não é improvisação, é intuição. Tenho uma ideia e adequa-se a ideia com a realidade da rodagem. É um filme com apenas cinquenta planos! E foram rodados na ordem em que podemos ver no filme. Em continuidade. É interessante pois é uma forma de trabalhar pura.

Como quando somos jovens e pegamos na nossa primeira câmara de filmar?
JONAS TRUEBA: Totalmente! É igual. E ainda bem que mencionas isso pois senti que era o mesmo quando era jovem e fazia curtas-metragens com os meus amigos, nos fins de semana. Era muito parecido. Gosto de manter essa sensação um pouco juvenil de fazer cinema. É uma forma de realizar muito amadora. Como se fosse a primeira vez.

A sequência final do passeio na natureza: a escolha equilibrada dos planos, a montagem suave, a naturalidade dos diálogos e dos movimentos das personagens. O ritmo certo. É o ponto mais alto do filme?
JONAS TRUEBA: Há uma entrega a esta natureza, e gostei muito de filmar esta parte final, como se fosse um pintor que vai com o seu cavalete e as suas tintas. Essa beleza como a naturalidade de pintar a natureza. Filmar com a luz real e em tempo real. Ter pensado bem na luz que desejas para a sequência e no espaço que vai da casa até essa pequena montanha, e filmar como um pequeno passeio, que não é tão importante, mas filmar tudo lhe dando toda a importância. Algo que o cinema não faz: prestar atenção às coisas sem grande importância narrativa. Parece que o cinema, para legitimar-se, tem de ser espetacular e filmar coisas incríveis! Nós preferimos quando o cinema reivindica e dá lugar, espaço e importância às coisas mais simples, mas as torna grandes. Fazer do pequeno, grandioso! Tornar extraordinário, o ordinário.

https://vimeo.com/819875040?embedded=true&source=vimeo_logo&owner=10825217
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