Vicente Alves do Ó deu um salto de fé neste seu novo projecto e apresenta-nos um registo diferente do que tem feito até agora. A verdade é que, mais uma vez, o cineasta atreve-se a fazer diferente e a arriscar, mostrando que dificilmente repetirá fórmulas ou fará o que é expectável. O realizador tem algo a dizer e quer que e os seus filmes se manifestem num quadro que muitas vezes considera adormecido.

Nesta entrevista à revista Metropolis, Vicente fala-nos de «Portugueses», o seu mais recente projecto, naquela que é uma homenagem à democracia, aos portugueses – com as suas falhas mas também com as suas qualidades – e ao movimento da música e dos poetas, que contam a nossa história, enquanto povo de um país que tem tudo, mas que tem muito medo de se assumir na sua plenitude. Um país que busca validação externa, quando os mais elevados valores devem ser trabalhados de dentro para fora e quando a cultura e a educação deviam ser a maior das riquezas e a base mais importante de um povo.

Vicente Alves do Ó não se reconhece na ideia de repetir fórmulas apenas porque essas agradam ao público. “Não seria um realizador feliz se fizesse sempre a mesma coisa.” Apesar de ser frequentemente rotulado como “o homem das biografias”, rejeita essa classificação com firmeza, pois em nove filmes que já conta na sua filmografia, apenas três são biografias.

Nesse sentido, a vontade de fazer algo diferente já viajava com o realizador há algum tempo – especialmente em termos de forma, temática e, sobretudo, numa perspetiva política. Vicente Alves do Ó critica o que considera ser um certo conforto ideológico do cinema português, que muitas vezes evita abordar os episódios mais sombrios da história do país ou tocar nas suas falhas estruturais enquanto sociedade. Na sua opinião, é fundamental que o cinema e as artes, de forma geral, sejam mais interventivos. “Temos de estar mais perto das pessoas, falar mais sobre aquilo que é preciso ser falado, para que entendam que muitas vezes podem estar a ser manipuladas”, afirma.

Foi neste contexto que surgiu a ideia de «Portugueses». “Estava no meu caminho há muito tempo”, assegura, explicando que sabia que queria fazer um filme sobre “nós” – os portugueses –, com tudo o que isso implica: o bom, o mau e, sobretudo, o cinzento. A proximidade dos 50 anos do 25 de Abril acabou por reforçar essa vontade. “Já se tinha falado muito sobre o 25 de Abril, mas não sobre uma coisa que me interessa bastante: as canções dos grandes cantores, como é que elas entendiam a política, como é que a política se refletia na maneira de essas canções pensarem e serem”, confessa.

Foi aí que encontrou uma fórmula, “estranha, diferente”, como descreve, para falar de várias realidades e de diferentes camadas da sociedade portuguesa. Só então sentiu que podia, com audácia, intitular o filme de «Portugueses». “Algumas pessoas acharam excessivo retratar todo o espectro português – das classes abastadas às indigentes, dos marginais ao aparelho corporativista que ainda existe. Mas era isso mesmo que eu queria”, partilha.

Audácia de questionar

A audácia inicial de fazer um filme como «Portugueses» transformou-se, com o tempo, numa convicção. “Temos de fazer um filme sobre nós, sobre aquilo que temos de bom e de mau. Temos de nos olhar ao espelho mesmo quando não gostamos. Temos de falar da nossa música, dos últimos 50 anos, do que correu bem, mas, acima de tudo, daquilo que ainda não está feito”, declara.

Para o realizador, este momento não só é oportuno, como é, acima de tudo, urgente. «Portugueses» não é, por isso, e como faz questão de sublinhar, um filme panfletário nem demagógico. “Desde que respeitem os direitos constitucionais, os direitos humanos, o direito à liberdade e à criação artística, para mim, qualquer partido pode existir”, enaltece.

É, então, dentro desse espírito que o filme se posiciona: olhando para todos os lados – esquerda, direita, centro – e questionando os lugares-comuns. “Desmonta certos conceitos, como a ideia de que os pobres são todos bons e os ricos são todos maus”, diz, acrescentando o exemplo de uma personagem do filme, uma mulher pobre que vive num bairro de lata, com filhos para alimentar, e que, ainda assim, faz questão de rezar por Salazar, que considera ter cuidado dela. “Temos estas coisas que precisamos de desmontar. A sociedade portuguesa é feita destas variantes todas.”

É precisamente essa complexidade que o filme quer explorar. O cineasta sugere que a nossa dificuldade em definir quem somos pode estar na raiz de muitas das nossas expressões culturais. “Se calhar por isso é que somos bons na poesia e o fado é a nossa canção nacional. São duas artes que vivem do questionamento, da ambiguidade, da falta de certezas. ‘Eu não sei quem sou’, já dizia o Pessoa. Se calhar, isso faz parte de nós – e não faz mal.”

O cineasta vê o filme como um reflexo dessa identidade múltipla e muitas vezes contraditória, mas diz que é também um apelo ao debate. “Estamos numa altura em que temos de discutir quem somos, o que queremos, como é que podemos fazer algo melhor com isto. Não é nos extremos que está a solução, porque já sabemos para onde eles nos levam.”

Para Vicente, este é um filme sobre a complexidade daquilo que somos e acredita que qualquer português, ao ver o filme, se encontrará em pelo menos uma das histórias ou personagens. “É um filme difícil de definir”, admite, e entre tantas personagens (50 atores), “não existe uma intenção de escolher uma história, uma pessoa. Estamos a falar de um país”, complementa.

Neste exercício de “filme estafeta”, em que uma personagem passa para outra e assim vão contando a história, não é a história de cada um que interessa. “A história é de todos. É como um coro que está a falar, ou que está a cantar. Fala das suas agruras, das suas vitórias. E, portanto, temos mesmo de misturar aquela gente toda”, explica, adiantando que não pretendia um filme de arquétipos. “O que o filme tenta fazer é desmontar isso. Já se fizeram muitas coisas sobre o 25 de Abril e vão continuar a fazer-se. Mas a tendência é colocar cada tipo numa trincheira, rodeado de um fosso, como se ninguém se pudesse aproximar. Como se não pudessem mudar. Isso faz com que tudo soe… não direi falso, mas ‘a boneco’. E nós, portugueses, gostamos muito desses bonecos.”

Numa altura em que o país está prestes a ir a eleições, Vicente Alves do Ó considera que as pessoas não gostam de pensar por si e pela sua cabeça e que poucas assumem uma opinião e se responsabilizem pela mesma. Nesse sentido, quer que o seu filme “seja uma provocação, uma intervenção”, assim como também quer ser um pouco polémico, para que as pessoas discutam o tema. “Estou farto de ouvir as pessoas saírem do cinema a dizer: ‘Gostei muito. Que lindo. Que soco no estômago e depois seguem com a sua vida. Essas expressões já não me dizem nada.”

Vicente sonha com filmes que deixem as pessoas desorientadas. Que as façam pensar: ‘O que é que ando a fazer com a minha vida?’ Na sua opinião, esses é que são os filmes que deviam estar a ser feitos agora. «Mas infelizmente não estão. Estamos doentes enquanto seres humanos. Talvez nunca tenhamos estado tão desligados uns dos outros. E como é que se passa para outro nível, se não se resolve esta “doença” primeiro?», questiona.

“Este foi o meu filme mais complexo, mas também o mais tranquilo”

Era uma vez…

Em «Portugueses», Vicente Alves do Ó reuniu o trabalho de cinquenta atores. Uma tarefa desafiante à partida, mas que, segundo o realizador, se revelou surpreendentemente fluida graças à preparação meticulosa e a uma estrutura narrativa pouco convencional. “Acho que um filme se faz muito na fase de preparação. E essa parte foi deliciosa. Fazer casting, escolher elencos… é algo que adoro fazer, há muitos anos”,conta o realizador.

Apesar da complexidade logística de trabalhar com tantos intérpretes, garante que o processo foi marcado por entusiasmo e leveza. “Foi muito divertido juntar estas pessoas. Tive apenas duas grandes preocupações: encontrar os atores (homens) cantores – porque conhecia muito poucos – e assegurar que cada história encaixava no tempo certo”, partilha.

O filme foi construído a partir de uma estrutura narrativa em cadeia, onde cada personagem se liga à seguinte e essa ideia nasceu anos antes, quando dava aulas de interpretação na ACT – Escola de Actores. “Fui convidado para orientar o filme do terceiro ano do curso. E percebi rapidamente que os alunos estavam preocupados com quem ia ser o protagonista.” Foi a partir dessa constatação que decidiu subverter a lógica tradicional de protagonismo, criando uma história onde “todos podem ser principais e secundários, dependendo daquilo que fazem com o que lhes é dado”.

O resultado foi um exercício pedagógico que acabou por levar a cena um dos projectos do curso – «O Amor é Lindo» e que agora inspirou o formato de «Portugueses». “Criei uma estrutura em cadeia: A encontra B, B encontra C, C encontra D… Cada ator tinha duas cenas, ponto final. Achei altamente comunista: toda a gente é protagonista e secundária ao mesmo tempo.”

O método resultou num ritmo de rodagem intenso, mas estimulante. “Apesar de ser o meu filme mais complexo, foi também o mais tranquilo. Cada história era filmada em dois dias. Até a equipa técnica estava entusiasmada pois todos os dias parecia que estávamos a fazer um filme novo. Era uma constante mudança de decor e de elenco.”

No final, Vicente Alves do Ó mostra-se orgulhoso da forma como a equipa abraçou o espírito do projeto: “Este filme nasce de uma atitude quase pedagógica: mostrar que um ator é tão bom num papel principal como num secundário. Eles perceberam isso e deram tudo. Estão todos muito bem.”

Um musical?

O realizador falou também da natureza híbrida do seu novo filme, que inclui momentos musicados, mas que hesita em chamar de musical. “As canções estão lá para servir a ação, não são apenas decoração. Não quis que fosse um musical no sentido clássico. Algumas canções ficaram, outras saíram, mas a versão final foi equilibrada.” Redescobrindo as canções da época, e com a direção musical de Lúcia Moniz, o filme traz momentos muito intensos, mas um dos mais fortes foi vivido pelo realizador com um dos atores: Diogo Branco, neto de José Mário Branco.

No mesmo local onde anos antes filmou uma cena do seu filme «Amadeo», o realizador acompanhou a cena em que Diogo Branco grava uma música do seu avô, no topo da montanha, avistando-se no vale a casa onde o próprio José Mário Branco viveu. Recordando como um momento particularmente intenso durante as filmagens, Vicente confessa que foi um dos pontos mais impactantes do filme: “No final da cena, abraçámo-nos os dois a chorar e a Lúcia tirou-nos uma fotografia. Foi tão pessoal que não voltei a partilhar essa imagem. Virei-me para a equipa e disse-lhes: ‘Seja o que for, o meu coração já vai daqui cheio.’” Guardou a foto para sempre, como mais um recorte da sua vida já tão cheia de histórias, memórias e sonhos.

«Portugueses» não estreou em Abril, no aniversário da Revolução dos Cravos propositadamente. “Foi uma escolha. Senti que ele tinha de ser visto com alguma distância. Faz mais sentido assim.” Em breve, porém, haverá outra estreia. O seu novo projeto, agora intitulado “O Dia Mais Feliz da Minha Vida”, está a caminho e promete emoções sem rede de segurança. “É o meu filme mais biográfico”, confessa.

Entre o cansaço social e a esperança criativa, Vicente Alves do Ó mantém-se fiel ao cinema como espaço de verdade. “É no cinema que eu posso estar mesmo à vontade. E é lá que quero continuar a provocar, a emocionar e a fazer pensar.”

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