Ao longo da mais do que centenária História do Cinema, muitos filmes apostaram na equação “polícias contra ladrões”. Pelo contrário, são escassos os exemplos das obras que optaram por assumir uma visão dialéctica entre o papel das forças da ordem que defendem o status quo reinante, leia-se, a classe dominante e a consequente defesa do Estado que a protege, e a oposição política e militante a esse estado de coisas e mesmo o confronto revolucionário contra o próprio Estado. Muito menos foram os projectos que no domínio da ficção (no plano dos documentários a coisa fia mais fino) assumiram claramente um dos lados da barricada, nomeadamente quando o redutor e maniqueísta conceito do mal e do bem prevaleceu nas opções estratégicas de produção, acabando por comprometer uma visão séria das razões que sustentam quaisquer das partes envolvidas.

De entre os filmes que sobressaíram da norma e de uma vertente dicotómica que não faz qualquer sentido, porque a realidade é muito mais complexa, alguns permanecem na memória, aqui e além com o estatuto de obras-primas. Por exemplo, o muito seguro «Harlan County, USA», 1976, de Barbara Kopple, incursão pelo mundo controverso da classe operária norte-americana durante a longa greve que ficou conhecida por “Brookside Strike”, que em 1973 mobilizou cento e oitenta mineiros e suas famílias contra a Duke Power Company. Nele ficou exposta a cumplicidade de uma parcela da autoridade policial local com os fura-greves no desencadear da violência que foi registada pelas câmaras e que atingiu a própria equipa durante a rodagem. Não obstante a sua óbvia orientação política e ideológica, recebeu o Óscar para Melhor Documentário de Longa-metragem. Ficando nos EUA, que bem precisa hoje de cineastas da mesma envergadura e coragem, destaco a ficção impregnada de realidade que se intitulou «Medium Cool» («América, América Para Onde Vais?»), 1969, realizada por um grande Director de Fotografia, Haskell Wexler, cuja acção decorre no ano das manifestações e distúrbios ocorridos em Chicago por ocasião da Convenção do Partido Democrático, ou seja, 1968. Período que foi igualmente noutras partes do mundo o fim e o começo de muitos sonhos e alguns pesadelos que ainda prevalecem nos nossos dias e influenciam o cariz das perguntas que continuam no ar a propósito do que vale ou não vale o combate por um ideal, por uma vida melhor, por uma sociedade mais justa e menos desigual.

Para não me acusarem de só dar exemplos oriundos dos EUA, digo-vos que em Portugal se fizeram grandes filmes em que se deu relevo ao confronto entre a polícia, neste caso a polícia política do salazarismo, e a luta igualmente política dos opositores ao regime do Estado Novo. De entre eles destaco «A Balada da Praia dos Cães», 1987, de José Fonseca e Costa (baseado no livro homónimo de José Cardoso Pires), um dos mais conseguidos a equilibrar o pessoal e o colectivo. Nele se destacam o perfil (não isento de ambiguidades) de um agente da polícia judiciária e os meandros da luta clandestina contra a ditadura fascista, sem esquecer a presença da PIDE como força de repressão impiedosa e os crimes contra os opositores do regime.

Esta breve introdução serve aqui e agora para lançar as cartas e os dados que se jogam nas entrelinhas do bem mais singelo «Les Gens D’à Côté» («Os Novos Vizinhos»), 2023, escrito e realizado por um veterano do cinema francês, André Téchiné. Nele encontramos a protagonista, Lucie (Isabelle Huppert), que se apresenta como funcionária pública, numa abstracção de linguagem que esconde, para efeitos de relacionamento com os ditos vizinhos, o seu verdadeiro estatuto profissional, a saber, o de polícia. Lucie, mulher atormentada, com algum desejo de pacificação emocional, e viúva do agente Slimane (Moustapha Mbengue) que se suicidara na sequência de um incidente que será citado mas nunca cabalmente esclarecido. E porque esconde ela a natureza do seu real emprego? Tudo começa um belo dia em que, no meio da mais absoluta rotina, por um daqueles acasos do destino, Lucie repara na algo suspeita solidão de uma criança de oito anos com nome de flor, Rose (Romane Meunier). Julgando-a perdida, pega-lhe na mão e leva-a para casa. E, surpresa das surpresas, a miúda vive com os pais, Julia (Hafsia Herzi) e Yann (Nahuel Perez Biscayart), que por sua vez vivem paredes meias com Lucie.

Depois deste episódio saído do mais banal dos quotidianos, pouco a pouco, as referidas personagens vão entrando na vida umas das outras. Temos assim uma polícia que abandona o seu relativo “casulo” familiar e passa a gostar da companhia e da simpatia que irradia de Julia, vizinha do lado e professora que aparenta ser uma representante da pequena-burguesia urbana relativamente conformada com o que a sociedade lhe dá. Já o marido, um rapaz dotado para a pintura e desenho, não se encaixa no mesmo padrão. De facto, os seus movimentos estão limitados ao perímetro imposto pela liberdade condicional a que está sujeito. E a pergunta surge natural na cabeça do espectador: por que carga de água foi condenado a essa pena, suave mas constrangedora? Saberemos, porque ele confessa a Lucie, que pertence ao Black Bloc, grupos de inspiração anarquista que mascarados e vestidos de negro optam pela acção directa e violenta nas diferentes manifestações onde participam. Esta revelação cai como uma bomba no seio de um relacionamento que até ali parecia e se queria normal, ou melhor, normalizado, sobretudo por uma vontade de redenção por parte de Lucie, que vemos exorcizar os seus fantasmas, nomeadamente os que se desencadearam após a morte de Slimane, o polícia morto que a “visita” como uma alma penada como se ainda partilhasse com ela o dia-a-dia. Diga-se que essa fuga para o sobrenatural não faz grande falta e não acrescenta nada de novo ao devir narrativo, nem ao de Lucie nem ao do casal e respectiva filha. Provoca, isso sim, uma sensação de estranheza e, pior, empresta alguma impotência ao modo como Lucie encara o concreto das relações humanas, que fica a pairar no limiar do real e do espiritual. No final das contas, será na prática a dissimulação da matéria de um crime e a má-consciência que por ali se espraia que empurra a narrativa, primeiro para uma convulsão grave no plano criminal e depois para um impasse, que só no final, mesmo no final, será resolvido. E mesmo assim ficamos sem saber se bem ou mal resolvido, a médio ou a longo prazo. Esta equação que atravessa diversas sequências do filme constitui afinal o sim e o não da nossa adesão a esta proposta de narrativa com contornos políticos, policiais e morais.

Não está mal, mas o cineasta já fez melhor.

Título original: Les gens d’à côté Título internacional: My New Friends Realização: André Téchiné Elenco: Isabelle Huppert, Hafsia Herzi, Nahuel Pérez Biscayart Duração: 85 min. França, 2024

ARTIGOS RELACIONADOS
Novos Vizinhos – trailer

Isabelle Huppert reencontra André Téchiné, o cineasta octogenário com quem não trabalhava desde "As Irmãs Brontë", de 1979, num drama Ler +

ERNEST COLE – PERDIDO E ACHADO

«Ernest Cole: Lost and Found» («Ernest Cole: Perdido e Achado»), 2024, foi produzido e realizado pelo haitiano Raoul Peck, cineasta Ler +

Crítica Queer – estreia TVCine

“O sofrimento, brada-se a dobrar, a felicidade exprime-se em demasia, os amantes querem-se de perder o fôlego, a solidão sente-se Ler +

A Mulher que Morreu de Pé

Recentemente, Eva Brás Pinho, jovem deputada do PSD, durante a sua intervenção na Assembleia da República sobre o enquadramento legal Ler +

Crítica A Rapariga da Agulha – estreia Filmin

Há em «A Rapariga da Agulha» («Pigen Med Nalen»), 2024, dirigido pelo sueco Magnus van Horn, uma relativamente óbvia protagonista, Ler +

Please enable JavaScript in your browser to complete this form.

Vais receber informação sobre
futuros passatempos.