Page 85 - Revista Metropolis 123

LEGADO MISSÃO IMPOSSÍVEL

nunca recrutaria para a minha companhia militar, por
se revelarem lentos e mais do que incompetentes no
exercício de apontar ao alvo.

Dizem que, antes de rodar este filme, Rainer Werner
Fassbinder viajou até Lugano, na Suíça, para se encontrar
com um dos seus realizadores favoritos, o grande
Douglas Sirk. Este filme, «O Mercador das Quatro
Estações», seria o resultado desse encontro, associado
ao visionamento de algumas das obras-primas do
mestre, nascido Hans Detlef Sierck, em Hamburgo,
no ano de 1897, cuja carreira nos Estados Unidos ficou
marcada pela excelência dos seus melodramas, quase
sempre de cinco estrelas. Mas, caros leitores, para
além do nome Hans, quem sabe uma memória ou uma
homenagem dessa relação entre os dois cineastas, neste
filme e no seu final aparentemente feliz vejo mais o
cinismo de um Luis Buñuel, e sobretudo o modo de ser
e estar alemão que Douglas Sirk conhecia muito bem,
mas a que deu a volta sem abandonar algumas das suas
grandes componentes quando adaptou e inseriu a alma
germânica nos valores defendidos pelo American way
de vendedor ambulante, contrata para o substituir, nem of life e, naturalmente, pela indústria de Hollywood.
mais nem menos, o fogoso amante que fora para a cama Enfim, vejo ainda a predominância das cores fortes do
com a mulher. Tudo bem, as coisas até pareciam correr de Eastmancolor, e algo que ainda fica mais claro: os filmes
feição, até ao dia em que descobre que algo se passou na sobre pessoas comuns podem muito bem contar com
sua ausência. Num outro caso, um camarada da Legião personagens e situações que, no final das contas, se
Estrangeira opta por ficar ao serviço de Hans, e mais apresentam maiores do que a vida.
uma vez a sonsa Irmgard não se faz rogada e dirige-lhe
olhares comprometedores. Seja como for, o status quo De uma forma geral, destaque para o pulsar das emoções
familiar, mesmo pairando ali a sombra da infidelidade, geradas por situações onde as diferentes facetas da
volta ao habitual e precário equilíbrio, só interrompido solidariedade e da pulhice humana se conjugam com
pelo crescente desespero de Hans que, não encontrando a vida cinzenta e pequenina de um homem pequeno,
respaldo nos poucos que o apoiaram e incapaz de reatar casado com uma mulher maior do que ele, mas só na
a antiga e secreta paixão com a mulher das peras, perde estatura. De qualquer modo, há uma opção muito
o gosto de viver e vai lenta e progressivamente caminhar visível na direcção de actores, cuja consequência nos faz
para a morte através do consumo excessivo de bebidas deter o olhar sobre o rosto dos actores em momentos
alcoólicas, que lhe estavam interditas. Nesta fase final, chave da acção. Parece que o plano paralisa a realidade
a realização não hesita sequer em inserir uma sequência circundante, da mesma maneira que o corpo e o olhar
supostamente rodada em Marrocos, com música a das personagens. Não há montagem que resista a
condizer, e que pessoalmente considero desnecessária, uma especulação visual assim, para o melhor e para
algo ridícula e mal dirigida, pouco ou nada credível, a o pior, e se por vezes o efeito obtido funciona, outras
não ser que se queira ler nas entrelinhas uma qualquer vezes essa espécie de freeze frame dinâmico desespera
forma satírica de representação martirológica, sob a quem visiona, porque se perde algum do impacto e do
forma de flagelação, praticada por um guerrilheiro ritmo subjacente ao processo de desenvolvimento da
magrebino e negro que, ameaçador e de chicote em narrativa.
punho, lança o dito contra as costas do pobre Hans, salvo
in extremis por dois legionários que, sinceramente, eu Magnífica cópia digital restaurada. jgb

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