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LEGADO MISSÃO IMPOSSÍVEL




                                                              de ser divertidos, como os anjos papudos e os quadros
                                                              pendurados nas paredes onde vislumbramos pinturas
                                                              do género “O Menino da Lágrima” (só de pensar
                                                              nisso, agora sim, vou pedir mais um cuba libre). Mas o
                                                              realizador soube levantar-se, sacudir a poeira e dizer o
                                                              sempre improvável no pasa nada. Mesmo assim, num
                                                              mundo fragmentado e ameaçado pela dita puta, mais
                                                              sacrílega e profana do que verdadeiramente sagrada,
                                                              podemos dizer que o evidente sarcasmo com que R. W.
                                                              Fassbinder impregnou a maioria das sequências fica
                                                              na nossa memória como um depoimento cruel, mas
                                                              sincero, sobre os caminhos cruzados que uma equipa
                                                              de cinema por vezes experimenta para sobreviver num
                                                              meio em que o homem surge como o lobo do homem,
                                                              onde as máscaras que cada um usa ocultam o olhar,
                                                              que devia ser directo e honesto, de quem surge como
                                                              interlocutor privilegiado.

                                                              Porque  mais  vale  atirar  ao  alvo  e  errar  do  que  nada
                                                              fazer, numa palavra, apesar das minhas reservas como
                                                              profissional de cinema perante uma ficção venenosa,
                                                              uma visão relativamente exagerada e grotesca sobre
                                                              a putaria do cinema, podia muito bem sentar-me ao
                                                              lado do autor e compreender, como ele, as dores de
                                                              parto e os riscos, calculados ou não, de uma qualquer
                                                              produção cinematográfica, assim como o maior ou
            cama com Hanna (Hanna Schygulla), e referindo-se a   menor empenho da equipa, real ou ficcionada, que neste
            Jeff, o realizador, diz: “É um amador! Não é assim que   filme demonstra não recear morder a mão de quem os
            se trabalha.” Responde Hanna: “É preciso conhecê-lo   alimenta. Para acabar, brindo com um derradeiro cuba
            bem. Ele consegue dar-te liberdade como actor. Isso é   libre e, como diriam os nuestros hermanos, Salud…!
            muito raro.”
                                                              Direcção de Fotografia do mestre Michael Ballhaus.
            Diga-se, a citada puta não é outra aqui senão o cinema,   Nunca será demais salientar a qualidade da sua arte,
            a “vaca” sagrada a que Fassbinder dedicou os melhores   assim como atribuir nota máxima para a excelência
            anos da sua vida e, no fundo, abraçou convicto, como   das  cópias  digitais  restauradas  que  nos  permite
            aquelas personagens que o acompanham na vida real   visionar com inegável prazer as propostas fílmicas de
            ou na ficção e que emprestaram alguma coisa da sua   um grande e controverso homem de cinema, tanto no
            identidade de modo a exporem as contradições pessoais   grande como no pequeno ecrã.
            e colectivas no grande ecrã que, em muitos casos, não
            se deram ao cuidado de resolver satisfatoriamente   Destaque para Eddie Constantine, o actor que recusa
            na intimidade. Eles sabiam como, num contexto     a maquilhagem, e o modo como através do seu rosto
            profissional, podiam ser contaminados pela puta   impassível lemos a crítica do caos circundante na
            sagrada, que podia projectá-los para a ribalta ou   rodagem de um filme dentro do filme. Na banda sonora
            arrumá-los a um canto sem dó nem piedade. Neste filme   musical ouvimos as composições do álbum de estreia de
            rodado em Espanha, a PUTA ou a VACA SAGRADA       Leonard Cohen, “Songs of Leonard Cohen”, entre outras
            pode até ser vista como um TOURO ENRAIVECIDO,     sonoridades extraídas de diferentes universos musicais,
            de cornos afiados, como por lá se usa, e a cornada que   como faixas do LP “Spooky Two”, da banda blues rock
            o cineasta queria dar e que, no final das contas, foi ele   Spooky Tooth. Perguntarão se faz sentido. Bom, se
            que levou, lançou-o pelos ares, numa série de piruetas   perguntassem ao realizador ele diria que sim, e eu diria
            mais  ou  menos  artísticas,  fazendo-o  estatelar-se  no   porque não. E ambos acabaríamos a pedir, ele um cuba
            chão daquele Hotel EXCELSIOR VITTORIA, decorado   libre, e eu um whisky, já agora irlandês e sem gelo.
            com uma boa dose de artefactos kitsch, que não deixam   joão garção borges




                                                                                        METROPOLIS OUTUBRO 2025    81
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