Séneca (4 a.C. – 65 d.C.) alertou que “o início da salvação é o reconhecimento da culpa”, mas o saber do sábio de Roma não foi devidamente exercitado por Justin Kamp, jornalista abalado pelo alcoolismo no conto moral «Juror #2», eleito um dos dez melhores filmes de 2024 segundo a National Board of Review. A hipótese de que o repórter tenha atropelado uma jovem, que morreu enquanto fugia do namorado agressor, povoa a sua mente enquanto ele assume a tarefa de integrar o júri para julgar o caso, em Savannah, na Geórgia. A cada dia de deliberações do coletivo incumbido de analisar o caso, Justin põe em dúvida as suas atitudes no dia em que a jovem foi morta. No dia em que estava bêbado. Mais um dia. Hoje, ele preserva sua sobriedade nos alcoólicos anónimos (AA), sobretudo sob os conselhos do seu padrinho, Larry. Estar sóbrio, entretanto, não expia a sua dúvida, e esta atormenta-o, ruindo as suas certezas a cada passo que dá rumo à condenação de um possível inocente. No teatro das farsas do dia-a-dia, a encenação mais difícil para Justin é fingir a sua isenção, mas um Midas da dramaturgia, o italiano Luigi Pirandello (1867-1936), foi cirúrgico ao avaliar o ónus de fingir o que não se é: “A culpa é dos factos, e somos todos prisioneiros deles”.

É dessa prisão que fala o novo (e talvez último) filme de Clint Eastwood, em plena atividade aos 94 anos, mas sem o mesmo prestígio de que desfrutava no período de apogeu da sua atividade como realizador, coroada com Óscares por «Imperdoável» (1992) e «Million Dollar Baby» (2004). A produção de US$ 35 milhões parte de um argumento do dramaturgo Jonathan Abrams que evoca o mesmo ensejo existencialista seguido pelo cineasta em «Mystic River» (2003): o pacto de silêncio em relação a fardos. É recorrente na obra do artista um estudo de casos (violentos) em que o merecimento passa a ser desconsiderado. Não se trata mais daquilo que códigos como os de Hamurabi apontaram como Lei, pois a responsabilidade dos culpados ultrapassa aquilo que a Justiça pode harmonizar. Um feminicídio é um crime atroz, mas Eastwood é capaz de problematizá-lo ainda mais ao envolvê-lo numa mentira.


O eixo central da narrativa é o cadafalso em que Justin pisa ao perceber que, embriagado, pode ter tirado uma vida e, pior que isso, tenta negligenciar o seu envolvimento nessa possibilidade. A atuação de Nicholas Hoult na confecção dessa figura atormentada é tenaz. O seu olhar durante os encontros com o júri transborda inquietude. Alguma cumplicidade no seu pesar vai brotar na figura do policial aposentado Harold (J. K. Simmons, que quase toma o filme para si), outro dos jurados. A intimidade dele com a investigação de assassinatos põe em xeque a forma como o caso é conduzido pela ambiciosa promotora Faith Killebew, papel de Toni Collette. Ela tem fome de veredictos implacáveis, pois estes podem lhe garantir a promoção profissional tão esperada. O custo desse sucesso, contudo, é alto.

Parceiro habitual de Eastwood de 1977, Joel Cox assina a montagem de «Juror#2», o que assegura o equilíbrio entre a tensão e a reflexão. Yves Bélanger assina a fotografia, procura um tom claustrofóbico nos enquadramentos, sempre com cores rebuscadas.

Uma das sequências mais enervantes é o diálogo entre Justin e Larry (personagem interpretado por um luminoso Kiefer Sutherland) que mapeia o quanto a verdade pesa. É nessa passagem que Eastwood transpira a sua grandeza como um cronista dos artifícios.

Título original: Juror#2   Realização: Clint Eastwood Elenco: Nicholas Hoult, Toni Collette, J.K. Simmons, Kiefer Sutherland Duração: 114 min. EUA, 2024


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