Em «Grand Tour» – a quinta longa-metragem a solo de Miguel Gomes (se contarmos «Mil e uma Noites» como uma obra só) – o nosso semi-protagonista, Edward (Gonçalo Waddington), parte de comboio selva adentro em direção ao Saigão, deixando-se envolver pela sua magnificência e mistério, culminando numa violenta ereção. Não o vemos, nem sequer o ouvimos, apenas o lemos e interpretamos, enquanto os carris se estendem pela paisagem, deixando espaço à nossa imaginação para preencher a “imagem que falta”. De repente, o mesmo plano e a mesma personagem cedem ao sono, com o narrador a informar-nos da chegada de um sonho. E que sonho! Cinema de mimetização mudo (a emprestar-se do murneano estilo de «Tabu»), ainda que não siga rigorosamente as normas da sua referência, cujas imagens trazidas desse sono conturbado são coloridas, documentais e modernas, em contraste com o colonialismo histórico retratado, distante, entre tons de cinza e sombras, e temporalmente na esquina do século XX. É o cinema mudo a sonhar com as cores; é a fantasia a sonhar com o realismo; é o passado a sonhar com o moderno.
Possivelmente foi o ponto alto desta nova obra de Gomes, a epopeia do homem pela rota do Oriente, é uma fuga à mais “teimosa das mulheres”, Molly (Crista Alfaiate), determinada em casar com Edward, mesmo que todos os sinais apontem na direção contrária. É uma obra que, a esta “altura do campeonato”, revela o realizador como uma peça central do seu cinema, onde se notam as suas “costuras” autorais: a narrativa dividida em duas partes, duas perspetivas e duas transições; os temas recorrentes; o maneirismo da sua imagética; as faces; e a alternância de tempos, eras e naturezas das imagens. Miguel Gomes surge como o homem em dois estados, incapaz de distinguir os elementos que os separam sem essa continuação de narrá-las.
«Grand Tour», hoje reconhecido como vencedor do Prémio de Realização em Cannes, sendo o único português a alcançar tal mérito, reflete o cinema do seu criador. É essa vontade, ou vontades, que constitui a sua força motriz: o autor, finalmente, assumido e elevado ao seu estatuto, ou talvez seja o próprio cinema reconhecível que exige um abanão. Conforme nos aproximamos, o filme revela-se como uma viagem por um mundo inexistente, um explorador dos espectros que as imagens, porventura, deixam na sua ausência. E é por isso que Gomes apela ao espectador para ser mais do que um mero observador: um ouvinte, um peão fértil e imaginativo nesta demanda de múltiplas possibilidades. Goste-se ou não, e não é de agora, temos nome incontornável no cinema português.