«Ernest Cole: Lost and Found» («Ernest Cole: Perdido e Achado»), 2024, foi produzido e realizado pelo haitiano Raoul Peck, cineasta com provas dadas no domínio da militância a favor de causas que muitos como ele abraçaram e que constituem marcos civilizacionais na luta pela preservação da dignidade e memória dos povos no contexto do seu devir histórico e no lugar que cada um de nós ocupa no mundo em que vivemos. Recordemos a esse propósito «Lumumba: La Mort du Prophète», 1990, sobre o dirigente congolês assassinado, e o belíssimo «I’m Not Your Negro» («Eu Não Sou o Teu Negro»), 2016, dedicado ao activista e escritor americano James Baldwin. No filme que agora se estreia em boa hora pela mão da Films4You, Raoul Peck volta a concentrar a atenção numa personalidade ímpar, forte e representativa da negritude política e com intervencionismo culturalmente relevante. Trata-se mais uma vez de um documentário de criação e uma peça essencial para descobrirmos ou recordarmos a importância da vida e obra do fotógrafo sul-africano Ernest Cole (21 de Março de 1940 – 19 de Fevereiro de 1990).

Tal como se indica, há no filme um “lost” (perdido) e um “found” (achado) que importa referir: o lado perdido de um homem que viveu muitas vidas em várias geografias, sem nunca encontrar a fama e proveito que bem merecia, e o mistério que ronda a descoberta dos seus arquivos que se pensavam desaparecidos e que se encontravam inexplicavelmente arquivados num banco da Suécia, um dos países por onde passou na longa peregrinação após o exílio a que se viu forçado. Exílio provocado em grande parte pelo facto de em meados dos anos sessenta do Século XX, ou seja, na África do Sul ainda dominada pelo infame regime do apartheid, ver um livro seu publicado e logo proibido. Intitulou-se House of Bondage, que em português poderíamos designar por Terra da Servidão, ou mesmo da Escravidão. Não era para admirar, pois mostrava com particular acutilância, mas também com qualidade imagética e uma rara sensibilidade artística e visual, os horrores a que as autoridades brancas e racistas submetiam os negros na pátria amada e aziaga que o viu nascer. Por exemplo, uma das fotografias mostrava um grupo de mineiros, sem qualquer roupa, encostados de forma humilhante a uma parede e de braços no ar, para uma inspecção dita sanitária. E não era sequer a mais revoltante. Havia outras onde eram visíveis de forma explícita ou nas entrelinhas manifestações de similar violência. Quem quisesse observar essa obra com olhos de ver reconhecia os diferentes graus de desumanização que recaíam sobre a classe operária sul-africana, sobre simples pessoas contratadas e mal pagas para serviços de segunda categoria, ou sobre o cidadão comum que em casa ou nas ruas era sistematicamente oprimido e empurrado para os bairros de lata, para a pobreza, para a fome, ou seja, para as margens da sociedade do bem-estar destinada a whites only. Estas fotografias representavam assim de forma directa e corajosa uma visão crua do ser negro na África do Sul, ampliadas aos olhos do mundo numa selecção pictórico-literária onde o autor expunha e de algum modo denunciava as condições em que viviam os negros separados dos brancos num permanente exercício de segregação em que a repressão das mais elementares liberdades cívicas era diariamente assumida pelos agentes do poder dominante, incluindo o de alguns africanos iludidos com os favores que julgavam obter junto dos patrões.

Na sua primeira etapa fora da África do Sul, onde sempre quis voltar mas cujo regresso lhe foi negado pelas autoridades racistas, Ernest Cole aterra em Nova Iorque, e na Big Apple vai colaborar com publicações como a Ebony e a Drum e ainda o New York Times, com o qual, aliás, já possuía correspondência na área do fotojornalismo desde os anos cinquenta. Entretanto, o destino quis que a sua chegada aos EUA coincidisse com um dos momentos mais conturbados da luta pelos direitos civis. Ernest Cole opta por dedicar-se a um exercício que irá confessar ser muito perigoso, o de registar as condições de vida e a consequente resistência dos negros americanos. Chega mesmo a dizer que na África do Sul vivia com o medo de ser preso e espancado mas, nas suas incursões pelo Sul dos EUA, receava poder ser morto. Deste modo, o simples acto de apontar a objectiva era visto como uma ameaça. Na verdade uma arma de protesto que registava uma realidade controversa cujo manuseamento implicava um certo risco. Na prática, sentiu na pele (negra) que o denominado “sonho americano”, onde supostamente se vivia em liberdade e democracia, afinal não era um bem universal. Muitos americanos viviam como os seus compatriotas sul-africanos, os níveis de pobreza eram mais ou menos os mesmos, a discriminação racial atingia patamares não muito diversos, em certos casos o perfil de segregação não era menor e o conceito institucionalizado do whites only estava disseminado pelos quatro cantos das cidades e a sua não observância era considerada um crime, uma subversão da ordem que se queria manter, no fundo uma outra forma de apartheid. Todavia, na sua crescente demanda fotográfica, Ernest Cole não desistiu de encontrar o reverso da medalha e nunca deixou de reflectir sobre as contradições de um país em que, excepto no Sul racista, era permitido o convívio natural entre brancos e negros, sem ignorar as questões mais controversas que recaíam em geral no plano do relacionamento sexual. Em suma, «Ernest Cole: Perdido e Achado» dá-nos a conhecer um homem de espírito livre que sacrificou parte da sua liberdade material para nos dar a conhecer uma realidade que merecia e merece ser desvendada aos olhos de quem se interessa por estas matérias da arte e da vida. Testemunho maior, mas não único, do seu legado (cerca de sessenta mil negativos) foi o espólio encontrado de forma organizada e em boas condições nos cofres bancários suecos. De certo modo, podemos considerar este acontecimento como o milagre da ressurreição de uma obra e o renascer da memória de um homem que morreu ainda jovem, com dificuldades financeiras e doente, aos quarenta e nove anos. Estas fotografias, muitas nunca antes vistas, são uma das preciosas matérias-primas que serviram de base ao documentário de Raoul Peck. Filme que merece, sem sombra de dúvida, nota máxima e uma visita, militante ou não, a um qualquer grande ecrã onde se encontre disponível.
No Festival de Cannes de 2024, «Ernest Cole: Lost and Found», produção franco-americana, recebeu o prémio L’Oeil D’Or para Melhor Documentário, ex-aequo com a produção egípcia, «Rafaat Einy ll Sama», de Nada Riyadh et Ayman El Amir.
Título original: Ernest Cole: Lost and Found Realização: Raoul Peck Duração: 105 min. EUA/França, 2024
Fotos: (c) Ernest Cole