Criada a 22 de setembro de 1862, a Proclamação de Emancipação americana foi promulgada no dia 1 de janeiro de 1863. Assinado pelo presidente recém-eleito, Abraham Lincoln, o documento advogava que todos os escravos seriam livres, uma imposição que os grandes senhores das plantações de algodão do Sul não aceitaram, nem tão pouco colocaram em prática.
É neste contexto que encontramos os escravos Peter (Will Smith), a sua esposa e os quatro filhos, ainda sob domínio dos senhores da plantação onde trabalham e vivem. Levado à força para trabalhar nos caminhos-de-ferro, juntamente com outros escravos, a única promessa que Peter faz é que vai voltar para junto da sua família, custe o que custar.
Até aqui, parece que estamos perante apenas mais um filme sobre a escravidão. E não deixa de o ser. Mas a realização, a cargo de Antoine Fuqua («Dia de Treino», «Southpaw – Coração de Aço» ou «Os Sete Magníficos»), pretende ir mais além. É que “Peter” é inspirado na vida do escravo “Gordon”, que ficou eternizado neste momento da História da América, quando dois fotógrafos capturaram o seu semblante e as suas costas repletas de cicatrizes, cristalizadas no seu corpo após inúmeras chicotadas, depois da sua fuga quase milagrosa e do seu alistamento no Exército da União.
Com uma cinematografia muito despida de artefactos das grandes produções, Antoine Fuqua e a equipa escolheram filmar nos locais onde as batalhas se deram e onde milhares de escravos perderam a liberdade e vida, e é aí que começa, pelo menos para os mesmos, todo o espírito deste trabalho que não tem sido objeto de uma crítica unânime.
Numa altura em que o escrutínio de cada ação tem uma escala mundial, este é o filme que traz Will Smith de novo para a cena do entretenimento após a polémica “bofetada” a Chris Rock na mais recente edição dos Óscares. Este é, igualmente, o filme que causou controvérsia na passadeira vermelha durante a estreia mundial, quando um dos produtores, Joey McFarland, exibiu uma das cartas com a fotografia de “Gordon”, que foram impressas em 1863, durante uma fase da história do país em que se discutia se a guerra civil fazia sentido ou não, se realmente a escravidão existia e se os negros poderiam ou não alistar-se como soldados. Aquilo que o produtor considerou ser uma homenagem depois de um trabalho exaustivo de anos sobre este filme, rapidamente se transformou numa manifestação de apropriação cultural.
Também o facto de este escravo ter sobrevivido aos perigosos pântanos do Louisiana foi vista por alguns como algo aplicável apenas a um super-herói, assim como o mesmo ter escapado a um ataque de crocodilo apenas munido de uma faca, ou de efetivamente ter conseguido chegar ao acampamento dos Unionistas e resistido à perseguição de cães raivosos e um capataz astuto.
A verdade é que, apesar de não serem apresentados muitos dados que contextualizem historicamente o encadear dos acontecimentos, assim como a pertinência dos mesmos na narrativa, «Emancipação» marca a estreia de Will Smith num filme sobre escravatura porque a abordagem não é ser apenas mais um sobre a temática. Na ótica do realizador e do protagonista, este é, afinal, um filme sobre o amor, a importância da família, o poder da fé e a crença de que o plano maior é soberano.
Num determinado momento, em que Peter (Will Smith) tenta “evangelizar” os seus companheiros de cela, sobre o poder da fé em Deus, um escravo que acaba de sofrer um dos maiores horrores, confronta-o e pergunta-lhe onde está esse Deus e como se manifesta para aqueles que não têm liberdade. Peter responde que não sabe porque é que Ele aparece para alguns e para outros não, como que dizendo que a diferença está em quem escolhe acreditar, ou não, na sua existência.
Com uma interpretação sólida e exímia de Will Smith, e correndo o risco de não ter nomeações após as polémicas já referidas, em última instância, «Emancipação» é um filme sobre a maior das liberdades: aquela que começa dentro de cada um e é sustentada na verdade das suas escolhas e das suas crenças. Fuqua não deixa de levar-nos ao inferno da escravidão, mais uma vez, mas aqui a grande viagem é ao poder interior de um homem, e como esse pode contribuir para mudar a realidade exterior.
Título original: Emancipation Realização: Antoine Fuqua Elenco: Will Smith, Ben Foster, Charmaine Bingwa Duração: 132 min. EUA, 2022
[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº89, Janeiro 2023]
https://www.youtube.com/watch?v=wafyhTpWpUs