[Texto publicado originalmente no Cinema2000, 19 de Julho 2007]
Um dos melhores antídotos face à silly season dá pelo nome de «Alpha Dog», um espantoso drama urbano alicerçado em personagens fortes com uma direcção marcante de Nick Cassavetes e que anseia pelo abraço do público.
A história relata um trágico acontecimento ocorrido na Califórnia em 1999, recriando os factos verídicos de duas formas: como um documentário reencenado, com entrevistas com as testemunhas do rapto, e como um objecto ficcional, descrevendo os dias intensos dos protagonistas, alterando apenas o nome dos personagens por razões legais. Johnny Truelove (Emile Hirsch) é um puto endinheirado, um pequeno traficante das zonas abastadas de Los Angeles, que entra em rota de colisão com Jake Mazursky, um junkie neo-nazi, uma autêntica bomba relógio em constante detonação, numa interpretação de outra galáxia de Ben Foster. O seu irmão, Zack Mazursky (Anton Yelchin), é apanhado no fogo cruzado deste feudo e torna-se um estranho refém: é complacente em relação aos seus captores, tentando auxiliar o irmão, e divertindo-se como nunca antes o fez.
À medida que os personagens/testemunhas entram em contacto com Zack, o público é levado à descoberta destas criaturas de hábitos à solta debaixo do calor californiano. O seu microcosmo enquanto indivíduos alinhados sobre o mesmo rito de passagem é exposto pela objectiva de Cassavetes. Por exemplo, Frankie (Justin Timberlake) alberga o raptado, criando uma relação de empatia com ele; Julie apaixona-se por Zack; e a sua amiga fica perplexa com o “rapaz roubado”, tornando-se a sua babbysitter. A realização não se fica pelos contactos na primeira pessoa: a Frankie vem anexada a figura contraditória do pai, um executivo que se droga e alcooliza, mas tem de comer saudável. Estes são universos instáveis e excêntricos que Zack vai testar e desfrutar longe do seu ninho, numa narrativa aparentemente linear que graças ao engenho do argumento torna-se muito versátil.
O início de «Alpha Dog» sintetiza bem a sua alma: Sonny Truelove (Bruce Willis) afirma em “entrevista” que o desaparecimento do jovem Zack, provocado pelo seu filho Johnny, não foi apenas um negócio de droga que correu mal; é, acima de tudo, uma consequência da relação falhada entre pais e filhos. É um curioso spin sobre esta tragédia: de facto, a exploração perspicaz destes fios emotivos da paternidade falhada tem influência incontornável no destino final.
Mas o tráfico e os códigos desta actividade sobrepõem-se aos laços familiares. As ligações paternais a meia haste são extremas e há quem procure proteger e incentivar os filhos, nem que seja através do tráfico de droga, como caso do pai e do avô (Harry Dean Stanton) de Truelove. Pelo contrário, Olívia (Sharon Stone), a mãe zelosa de Zack, desenvolve uma redoma em torno deste, levando-o a querer experimentar o fruto proibido (drogas, álcool e a farra), por sua vez consumido em doses cavalares por Jake, o seu irmão mais velho (a actriz está pouco tempo em cena, mas tem uma sequência de representação assombrosa no final).

Os retratos e caracterizações dos jovens, que vagueiam pelo espaço entre os charros, as festas e os pequenos golpes, são sublimes e cheios de raça. É impressionante a quantidade de talento no filme num casting certeiro da parte de Cassavetes, que não efectua screen tests com os seus actores, apenas os escolhe e, pelos vistos, tem o toque de midas. E os preconceitos pela inclusão do músico/actor Justin Timberlake devem ser postos de parte, até porque ele está bem no papel. Aos poucos, ele constrói a sua carreira cinematográfica com desempenhos curiosos em «Black Snake Moan» (com Samuel L. Jackson) ou a voz de Artie em «Shrek O Terceiro».
O talento e o drama enterram-nos bem fundo neste complexo sistema de relações ambíguas entre diferentes pessoas com os mesmos objectivos, que, ironicamente, acabam por descarrilar ao querer resolver os assuntos à boa maneira dos filmes. Esse facto não é esquecido pelo argumento, pois a cultura do hip-hop (vídeos de rap aos tiros) e do cinema (com um poster “paternal” de «Scarface») parecem ser exemplos a seguir pelo bando de Truelove e companhia. Este retrato é atípico relativamente à imagem dos jovens teens impingida na actual veia do cinema comercial americano: o maquiavelismo de alguns e a crueldade invisível tornam o último terço de filme numa viagem difícil para os espectadores, até porque a mecânica do registo os torna impotentes mirones desta tragédia.
Discretamente, o início deste Verão revelou nas salas lusas alguns legados interessantes. Para além de Nick Cassavetes, Julie Gravas («A Culpa é de Fidel») e Jon Kasdan («No Mundo das Mulheres»), revelam-se promissores rebentos, que recuam no tempo e levam o cinema a pontos substanciais com complexidade e inteligência aliados a um compromisso comercial. «Alpha Dog» não é excepção desta bendita vaga e é um drama a não perder. O futuro dirá se estamos perante «Os Marginais» desta geração.
Título original: Alpha Dog Realização: Nick Cassavetes Elenco: Emile Hirsch, Ben Foster, Justin Timberlake, Bruce Willis, Anton Yelchin, Sharon Stone, Harry Dean Stanton, Olivia Wilde, Amanda Seyfried, Amber Heard, Lukas Haas Duração: 122 min. Estados Unidos, 2006