“Os museus são uma instituição ocidental.” afirma, peremptoriamente, um dos intervenientes africanos, num debate com alunos da Universidade de Abomey-Calavi, realizado após a inauguração da exposição com as vinte e seis peças do Reino de Daomé deslocadas do Musée du Quai-Branly para Benim. Este documentário da realizadora senegalo-francesa Mati Diop aborda um dos temas mais complexos e sensíveis das políticas culturais contemporâneas: a restituição de obras de arte aos países de origem. Este assunto tem sido cunhado por muitos como «Elginismo», expressão que remete a Thomas Bruce, 7º Conde de Elgin (1766–1841) que enquanto embaixador britânico para o Império Otomano recebeu uma permissão do governo turco para constituir um espólio de arte clássica grega onde se incluíam as famosas esculturas do Pártenon. Estas peças foram levadas para Londres onde se procedeu à catalogação, preservação, estudo e divulgação contribuindo muito para o que hoje se sabe da civilização helénica. Nos recentes tempos tem havido uma grande pressão dos governos gregos para a devolução das peças à origem num movimento que entretanto se disseminou para outros casos nacionais sobretudo dos países colonizados pelas nações europeias.
Em «Dahomey» é-nos mostrada a opinião de vários nativos sobre esta trasladação resultado das negociações entre os actuais presidentes de França, Emanuel Macron e do Benim, Patrice Tallon. Aqui vemos como para o discurso entra um emaranhado de questões políticas, culturais, étnicas e até religiosas que dificultam uma solução universal. As peças em questão foram levadas para França aquando as excursões militares de 1892 e o país passou por conturbados momentos históricos, com mudanças de fronteiras, passando por ser uma colónia francesa até ter a sua independência e actual mapa em 1960. Como acontece com muitos dos actuais países africanos, acabou por englobar várias tribos e etnias com culturas e línguas diferentes. Uma emergente vontade de conhecimento das suas raízes traz consigo um latente ódio às anteriores potências coloniais e a um recrudescimento de antigas dissensões étnicas. A formação do Reino vem desde os inícios do século XVII, mas é com o mítico Rei Ghezô, duas centúrias passadas, que conhece o seu momento de esplendor e glória graças à enorme fortuna obtida pelo infame tráfico de escravos na sua maioria dos povos limítrofes conquistados pelo monarca daoménico e pelas suas indomáveis mulheres-guerreiras.
Ao longo do filme ouvimos uma voz tonitruante de uma figura que diz, em língua Fon, chamarem-na de 26 somente. Queixa-se de ter estado fechada na escuridão do tempo e, agora que volta à sua terra natal, receia não a reconhecer. Em breve ficamos a saber que este manifesto do desenraizamento africano – infelizmente sentido por tantos ainda hoje – é proferido pelo fétiche do próprio Rei Ghezô. As suas dúvidas confirmam-se no mosaico de diferentes opiniões expressas pelos alunos profundamente divididos no entendimento do que é ser pertença de uma tradição africana ou ocidental. Mas, de forma mais dolorosa, do entendimento do quanto do que herdaram dos ocidentais tem de colonizador ou de universal. A frase com que abro este texto é exemplo e reflexo dessa dor e desse medo e como tal posição arrisca a obscurantismos: sem museus que preservem e curem as obras dificilmente estas se manterão para as gerações futuras. Uma outra aluna chama a atenção para o seu medo de as obras deixarem de ser vistas, de forma ocidental, como meras obras de arte e voltem a se revestir do seu carácter mágico-religioso da religião Vodum. Surgem também os receios mais pragmáticos: Como manter essas obras? Com que fundos? Como irá um povo sem recursos ter acesso à colecção? Que incorrectas apropriações políticas poderão ser feita dessas peças? Debatem os estudantes ainda sobre o tema do corpus: creem ser 7000 o seu total. Uns consideram um insulto a devolução de um número tão pequeno, outros um teste à sua capacidade de gestão e outros receiam não haver meios para receber tantas peças. De todas as vias que se possa abordar o tema do dito Elginismo – sociais, culturais, éticas, legais, etc – acaba por ser a do vil metal a mais central. A manutenção das peças museológicas tem um peso orçamental elevado mesmo para os países ocidentais sendo virtualmente impossível para os países africanos as manterem sem ajudas dos países que actualmente as albergam.
O documentário teve a grandeza de nos dar a conhecer, em primeira mão, as opiniões daqueles a quem, por tradição, as peças pertencem; e de colocar a nu a ferida ainda aberta dos golpes do colonialismo. Mas poderia, neste tema tão complexo e sensível, ter-nos mostrado também a opinião dos estudiosos e académicos que durante anos se dedicaram à preservação, estudo e divulgação destas peças. A questão da divulgação tem um peso muito grande neste tema. Por estarem expostas numa cidade europeia, as obras podem ser conhecidas por um maior número de pessoas, de diferentes origens e etnias, incluindo os imigrantes e africanos em diáspora. Em contrapartida, poucos serão os que têm meios e disponibilidade para visitar Cotonou. Sem essa divulgação (a não ser que haja futuramente empréstimos a museus estrangeiros), o impacto cultural será reduzido ou nulo. É de lembrar o quanto a arte africana deslumbrou os artistas europeus do início do século XX e, em particular, Pablo Picasso. Por exemplo, sem esse conhecimento não teria existido a célebre pintura “Les Demoiselles d’Avignon“, nem o subsequente movimento cubista que daí originou. A Arte, como a Língua, quando circula ganha novas vidas, formas e interpretações. Temos igualmente o exemplo da palavra fétiche que se usa para identificar estes objectos artísticos africanos de carácter religioso. Quando os portugueses chegaram à Costa de Ouro, na Guiné, deram o nome de «feitiço» a estas esculturas. O termo não tinha ainda o significado de «efeito mágico» que entretanto lhe foi atribuído e persistiu na nossa língua. A palavra viajou pela Europa até se sedimentar na forma fétiche que, a partir dos finais do séc. XIX, passa a significar «fixação por algo». A Psicologia e a Psicanálise puxam o termo para si atribuindo-lhe a conotação sexual que hoje todos reconhecem. Talvez o termo seja agora inadequado – e pouco científico – para se referir aos artefactos e caberá agora aos estudiosos africanos cunharem um outro que melhor as classifique.
Mati Diop, com este trabalho, vem de ser galardoada com o prestigiante Urso de Ouro na 74.ª Berlinale. Ao receber o prémio citou o poeta da negritude, activista anti-colonialista, Aimé Cesaire: «Podemos esquecer o passado, um fardo desagradável que nos impede de evoluir, ou podemos assumir a responsabilidade por ele, usá-lo para seguir em frente.» E aqui reside a principal fraqueza do documentário, que à força de se tornar político preocupou-se mais com o «fardo desagradável» e com uma visão unilateral, do que numa construção de um diálogo que permitisse a evolução. Depois do momento da viagem das peças e do da comuna de estudantes teria sido interessante acrescentar, a este curto documentário, a voz e opinião dos académicos e técnicos europeus que estudaram e museografaram e, aturadamente conservaram a peça número 26. Sem eles hoje certamente não haveria obra ou memória para servir de tema a «Dahomey».
Título original: Dahomey Realização: Mati Diop Documentário Duração: 68 min. França/Senegal/Benim/Singapura, 2024