Entre Abril de 1940 e Maio de 1945, a Noruega foi ocupada militarmente pela Wehrmacht, ou seja, pelas forças armadas unificadas da Alemanha Nazi, que junto com outras organizações repressivas exercia um controlo apertado sobre o quotidiano daquele país. Por outro lado, no plano civil, depois de um período conturbado e na sequência de diversas conspirações, acabou por ser controlada por um funcionário com funções administrativas, o Reichskommissar (Comissário do Reich), que recebeu a mais completa e miserável colaboração por parte de um governo fantoche constituído por simpatizantes e partidários do nazismo, o Nasjonale regjering (Governo Nacional da Noruega). Entretanto, o Rei Haakon VII (1905-1957), assim como os legítimos representantes do governo norueguês, foram empurrados para o exílio em Inglaterra.

Feita esta introdução do contexto histórico em que a acção de «Konvoi» («Comboio do Ártico» [The Arctic Convoy]), 2023, se desenrola, numa realização sem grandes rasgos mas competente q. b. de Henrik M. Dahlsbakken, precisamos acrescentar que o principal motor do argumento se insere numa faceta particularmente importante da resistência protagonizada pela marinha mercante de várias nações. Muitos patriotas noruegueses antinazis e antifascistas lutaram ao lado dos Aliados e, no caso do navio que serve de núcleo central das circunvoluções narrativas, estes vão cumprir uma mais do que arriscada missão que contava com o apoio da marinha de guerra britânica e dos serviços de informação do Reino Unido, aliás, de cujas bases navais haviam zarpado para alcançarem os mares gelados do Norte da Europa com uma carga preciosa e absolutamente fulcral a uma mudança de rumo nos dramáticos acontecimentos que decorriam num dos palcos mais activos da Segunda Guerra Mundial. Na prática, os navios mercantes que navegavam em comboio rumo ao porto de Murmansk na então União Soviética, o referido “Konvoi”, ocupavam na sua progressão posições específicas não muito distantes uns dos outros, garantindo dentro do possível a máxima segurança e um eventual, rápido e eficaz socorro em caso de agressão. Procuravam sobretudo evitar qualquer ataque demolidor dos furtivos e sempre imprevistos submarinos alemães. Os cargueiros que iremos ver em “Comboio do Ártico” levavam no porão armas de diferentes calibres para entregar ao exército soviético que, de forma destemida mas com baixas muito severas, lutava contra a bárbara invasão dos nazi-fascistas das potências do Eixo e países dominados pelas ditaduras de Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Temos assim neste filme uma visão particularmente realista do que se passava a bordo de um navio mercante civil adaptado ao esforço de guerra naval, sendo muito significativa a fidelidade da reconstituição dos diferentes adereços, figurinos e equipamentos da época. Preocupação dos responsáveis pela direcção artística que nos permite assim observar uma muito credível cenografia e coreografia de movimentos e atitudes que passa bem pelo retrato relativamente minucioso do que eram as rotinas assumidas a bordo para a eventualidade de uma situação de emergência ou mesmo uma ou outra mais incisiva operação de combate, inclusivamente, com a utilização de armamento pesado. Esta preocupação inserida no quadro geral da produção apresenta-se como uma das mais importantes de salientar e aquela que sem dúvida acrescenta alguma mais-valia a uma ficção baseada em factos que, com mais ou menos pormenor, podiam perfeitamente ser inspirados nas vicissitudes da realidade concreta de um conflito que, neste caso, assolava as geografias inóspitas do Norte da Europa. No campo da interpretação, os actores dão boa conta do papel que lhes foi atribuído, mas o seu esforço de representação para compor as nuances comportamentais de personagens com alguma complexidade fica em geral comprometido pela ausência de fulgor com que a realização assume as contradições entre o comandante e um pequeno grupo de oficiais e o não muito numeroso elenco dos “simples” marinheiros. E isso prevalece mesmo quando a ocasião se afigura propícia a maiores e mais intensos conflitos dramáticos, como o que se revela num acto involuntário de sacrifício e de heroísmo quando um marinheiro se vê obrigado a protagonizar uma operação de alto risco e quase suicida. De facto, a morte de um dos dois desgraçados escolhidos com um certo grau de arbitrariedade pelos seus superiores, e que veremos pendurados numa rede e com um simples gancho a empurrar as minas alemãs que se encontravam a flutuar e se aproximavam do navio numa deriva dantesca e aparentemente fatal (prontas a explodir se os espigões entrassem em contacto com o casco) dá-se em circunstâncias algo canalhas. A corda que sustentava o azarado rapaz não estava segura nem atada com firmeza e o nó mal amanhado desfez-se. Logo de seguida ele cai ao mar. Como naquela situação o navio não podia parar para o resgatar, acaba por desaparecer no horizonte num pranto de desespero. Nem precisamos de ser especialistas da matéria para sabermos que acabará por morrer de hipotermia e, pior, na agonia existencial de alguém que sentirá na pele o literal abandono a que foi sujeito, antecâmara de uma morte mais do que certa, gélida e brutal. Perguntar-me-ão, e o que se passa a seguir? No filme, a resposta que o argumento propõe vem embrulhada num misto de má-consciência e de uma espécie de fatalismo impotente. Numa palavra, já adivinharam, não acontece nada de especial. Há manifestações de pesar, sim, há quem manifeste sentimentos de grande amargura, mas num momento destes um argumentista de génio iniciaria aqui uma espécie de “revolta” contra o visível colapso da natureza humana. Naturalmente, a guerra não passa de uma imensa selvajaria, não há aqui lugar para sentimentos filosóficos, mas há limites para a prepotência inscrita nas decisões e nas ordens da hierarquia, mesmo que a lógica paramilitar pura e dura nos dissesse que provavelmente não havia outra solução e a frieza do realismo nos indicasse que a alternativa era o navio ir ao fundo com o impacto das minas flutuantes. Por outro lado, numa outra ocasião, quando o comandante e os seus mais próximos dão conta de que foi emitida pelos britânicos (que supostamente deviam escoltar e proteger o comboio marítimo, mesmo após alguns navios sofrerem danos avultados) uma estranha ordem para dispersar e regressar ao porto de partida, volta a erguer-se uma oportunidade soberana de gerar entre os marinheiros uma descarga de adrenalina colectiva que podia resultar num momento de alta-voltagem emocional. No entanto, mais uma vez, a realização e os argumentistas dirigem a atenção do espectador para aspectos exteriores ao vulnerável cruzamento de contradições que ameaçavam explodir no interior da componente humana do navio. Preferem ao invés reforçar a necessidade de seguir em frente a qualquer preço para dar seguimento a uma missão que, sem o apoio inicialmente previsto, caminhava para um provável mar de chamas, remoinhos de incerteza e correntes adversas ao bom fim do que fora o objectivo inicial, ou seja, o cumprimento cabal do plano dos Aliados concebido para fazer chegar ao destino as armas e munições que aqueles homens e uma mulher haviam assumido como a sua contribuição militante para a causa comum que os unia.


Dito isto, fica na memória do espectador um exemplo muito razoável e conseguido no plano da cuidada reconstituição histórica, apontamentos de uma aventura bélica levada a efeito por civis mobilizados para o esforço de guerra e que no ano de 1942 prosseguia um movimento que se pressentia, mais do que imparável, absolutamente necessário rumo a uma vitória que finalmente se impôs com a capitulação dos regimes nazis e fascistas na Europa, e pouco depois com a derrota do poder militarista e do regime imperial japonês, cuja expressão máxima foi corporizada na Guerra do Pacífico.

Em suma, um filme que vale a pena ver pela simpatia que merecem os seus pressupostos, mas que podia ir muito mais longe, inclusivamente no campo do género de guerra, com o legítimo desejo de alcançar um lugar de mérito junto de segmentos diversificados do chamado grande público.

Título original: Konvoi Título internacional: The Arctic Convoy  Realização: Henrik Martin Dahlsbakken Elenco: Tobias Santelmann, Anders Baasmo, Heidi Ruud Ellingsen Duração: 108 min. Noruega, 2023

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