À luz de Ibsen, depois de anos e anos dedicados a múltiplas montagens de “Hedda Gabler” nos palcos europeus, a atriz holandesa Halina Reijn talhou uma linha autoral como realizadora que aproveita do dramaturgo norueguês o interesse pelos sentimentos represados e por fantasmas forjados pelos interditos sociais. «Instinct» (2019) fez dela uma cineasta – e o fez pelas vias da polémica – num desafio ao politicamente correto, ao retratar uma psicóloga prisional que ganha uma obsessão por um preso acusado de agressão sexual, criando uma dependência carnal e emotiva num espaço de interdições legais. Halina desafiou tabus de novo (incluindo os de cartilha de género) ao enveredar pelo terror, com twists de humor, no thriller «Bodies Bodies Bodies», de 2022, a escarnecer, mais uma vez, as convenções do que é moralmente proibido. O seu foco está sempre em mulheres e na forma como elas se deparam com situações em que toda a solidez das suas vidas pode ruir. Percebe-se isso no momento em que a CEO Romy Mathis, a protagonista do seu novo (e mais complexo) filme, «Babygirl», percebe estar enredada por uma relação sexual que criou para sair da inércia e, sobretudo, exercitar sua potência de controle.
O filme mais “foucaultiano” de 2024, capaz de traduzir com perfeição ideias escritas em “Vigiar e Punir” (sobretudo as reflexões de Michel Foucault sobre a introjeção da vigilância), esse estudo de personagem avassalador de Halina ganhou força na Oscar Season para 2025 a partir da sua passagem pelo Festival de Veneza. O filme foi coroado com a Copa Volpi, dada a Nicole Kidman pelo seu desempenho mais visceral desde «As Horas» (2002). A australiana interpreta Romy com base num estratagema de fruição, submissão e arrependimento estruturado por Halina a partir de uma reflexão sobre os thrillers eróticos dos anos 1990. O formato serve de génese ao script escrito por ela, mas é revisitado a partir de uma inquietação: “Naquela década, nessa linhagem de longas-metragens, alguém morria sempre e alguém era sempre punido, quase sempre as mulheres. O que procurei foi um olhar feminino numa ótica existencialista”, disse Halina à METROPOLIS, numa entrevista via Zoom promovida pelo Golden Globe Foundation.

No páreo pelo Globo de Melhor Atriz de Drama, Nicole implode em cena, numa composição tão radical quanto a de «Dogville» (2003) ao expor o calvário sentimental de Romy iniciado quando a executiva passa a ter um romance com um jovem estagiário, Samuel (Harris Dickinson, de uma retidão invejável). O casamento dela com o diretor de teatro Jacob (papel de Antonio Banderas) flui com equilíbrio e (aparente) harmonia, com deleites que ela complementa com masturbações. Tudo no lar deles parece obedecer parâmetros de respeito até à relação com Samuel. Do primeiro beijo à primeira relação sexual, tudo entre eles passa a seguir uma trilha de descontrolo – da parte dela. Frente ao domínio completo sobre o trabalho que ela tem, a presença do jovem baralha as suas certezas. A fotografia cálida de Jasper Wolf, amplificada por uma montagem taquicardíaca (editada por Matthew Hannam) ampliam esse desconserto, ao mesmo tempo em que o argumento arranja espaço para explorar os efeitos dessa “aventura” sobre a figura (vulnerável) de Jacob. A realizadora detona os arquétipos da masculinidade e também do empoderamento com uma coragem exemplar.
Título original: Babygirl Realização: Halina Reijn Elenco: Nicole Kidman, Harris Dickinson, Antonio Banderas Duração: 114 min. Holanda/EUA, 2024