Em «Vermiglio», 2024, escrito e realizado por Maura Delpero, o espectador será conduzido para o ano de 1944 e para uma região montanhosa do Nordeste de Itália, aparentemente idílica, mas não necessariamente para quem lá vive. Do ponto de vista ficcional importa salientar o contraste que se observa entre a vida local (submetida aos sinais de um algo distante conflito bélico) e os inquietantes ecos das notícias do que se passava nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial. Este contraste será reforçado pelo modo como se encena a relativa passividade com que os habitantes encaravam o seu quotidiano naquela comuna da Província de Trento (no dialecto local, Verméi).
Para além do mais, o poder em Itália permanecia dominado pelos fascistas, aliados das forças nazis, situação que constituía uma mais ou menos latente ameaça ao colectivo das populações que há muito por ali viviam. Na prática, forças repressivas de ambos os lados da referida aliança político-militar podiam surgir a qualquer momento. Se o fizessem havia o sério risco de encontrarem na aldeia um desertor, Pietro (Giuseppe De Domenico), oriundo da distante Sicília, que o professor Cesare Graziadei (Tommaso Ragno) mantinha escondido, situação que se revelava assaz difícil de sustentar. Essa situação será mesmo motivo de numerosas conversas, mais ou menos canalhas. Palavra puxa palavra, e um grupo de aldeãos mais críticos da sua presença não se coíbe a certa altura de vociferar em voz alta que os desertores não eram pessoas dignas de ser protegidas, pois mais não eram do que cobardes. Mas o professor, que mantinha um perfil singular numa comunidade pouco dada a grandes mudanças, não defendia essa ideia. E em resposta, assumindo com a devida firmeza as suas convicções, contrapõe que se existissem mais cobardes (ou mais desertores) provavelmente muitas guerras poderiam ser evitadas. Este homem de meia-idade apresentava-se em geral com uma visão mais arejada das coisas do mundo, que, aliás, se manifestava igualmente na forma como encarava alguns “vícios” em privado. No domínio dos prazeres menos íntimos, passava longas e boas horas a partilhar o gosto pela literatura e pela música clássica. Todavia, do ponto de vista familiar, Cesare mantinha um perfil deveras conservador.

Numa casa modesta, mas onde as necessidades básicas pareciam satisfeitas, Cesare vive com a mulher Adele (Roberta Rovelli), cujo estado natural parece ser o da gravidez. Mas o que mais surpreende no filme vai ser o lugar dado à imensa prole do casal, onde se salienta pela negativa o filho mais velho, que o pai avalia como sendo um medíocre, um alcoólico e incapaz. Também há um grupo de crianças mais pequenas que cumprem a sua função familiar e, digamos, “virginal”. Na verdade, retrato da inocência que vai faltando, para o melhor e o pior, aos filhos adolescentes de ambos os sexos. Do lado feminino (aquele sobre o qual incide maior atenção por parte dos progenitores, o mesmo sucedendo com a realização) destaca-se pelos seus modos discretos a figura de Flavia (Anna Thaler), a menina do papá a quem Cesare augura um futuro diverso que só a continuação dos estudos podia assegurar, mesmo que isso signifique o sacrifício e interrupção das carreiras escolares das suas irmãs, Ada (Rachele Potrich) e Lucia (Martina Scrinzi). Por um lado, Ada beneficia dos favores do pai, mas segue uma via sinuosa que a leva a descobrir o êxtase sexual e religioso em penitências absurdas e o fascínio por amizades furtivas com a “mulher livre” e mais carnal da aldeia. Por outro, Lucia, a mais velha, será desde o início a que parece querer seguir um rumo mais equilibrado e determinado, e até com alguma autonomia face ao padrão familiar. Não obstante, sentimos que no final das contas não será capaz de defender algo mais do que uma breve ruptura com a realidade vigente, que no fundo antecipa a sua redutora evolução na continuidade. Muito por causa disso acaba por aceitar, com natural entusiasmo, espírito de abertura e um pedacinho de ingenuidade os novos horizontes de relacionamento e os riscos de um amor, senão proibido, pelo menos difícil de enquadrar numa comunidade fechada que não parece muito dada a inovações da sua ordem ancestral e patriarcal. Finalmente, a experiência do fogo que arde sem se ver (o seu romance assumido até ao fim com o desertor Pietro) marca-lhe os contornos do destino e condena a jovem ao caminho expectável da idade adulta. Ao contrário do que previra, Lucia será empurrada para uma autêntica reviravolta de cento e oitenta graus nas suas expectactivas de vida, facto que irá condicionar e afectar a sua condição de mulher e mãe. E só aí ela acaba por se confrontar com os limites e consequências do que fora um belo, mas improvável idílio. Há que dizer que a maneira de ser de Lucia, os silêncios e uma certa ambiguidade no comportamento nos levam a pensar que a sua entrega física a Pietro não fora um acto fortuito, mas antes uma aproximação calculada que pretendia reunir num só gesto a redenção pessoal do rapaz e a afirmação consciente e activa da sua própria identidade, e não apenas da sua sexualidade. De certo modo, a partir de certa altura Pietro não era mais uma vítima da guerra nem um rapaz perdido e acossado em Vermiglio. Nem sequer um mero pretexto para gerar em Lucia um arrufo ou uma vertigem de amor clandestino. Saberemos por vozes desencontradas que Pietro salvara a vida ao primo de Lucia que, por sua vez, retribuiu o gesto protegendo o jovem soldado na sua fuga e deserção. Há igualmente no carácter de cada um dos amantes, e sobretudo naquele contexto socioeconómico, onde não podemos esquecer a influência dos julgamentos morais e o peso da ideologia dominante, uma conjuntura favorável aos caminhos da subversão dos valores que por ali eram considerados os mais aceitáveis, aqueles que não se discutiam. De facto, mal ou bem, Lucia ousou enfrentar o risco de ser criticada e até condenada pela sua opção enquanto mulher de corpo e alma rebelde. Só que, num período de convulsões, atravessado pela brutalidade da guerra, e as posteriores incertezas das crises do pós-guerra, não se podia esperar que prevalecesse por ali uma cristalina pureza de princípios.

E a ficção desenhada nas entrelinhas do que se diz e não diz, do que se sabe e não sabe, adquire maior peso e força quando, precisamente, a realização e a montagem de “Vermiglio” abandonam o ritmo pausado e contido da primeira metade do filme e mergulham de cabeça no desvario das emoções. Os conflitos que pareciam inevitáveis associam-se aos que a partir de uma base segura resvalam para um plano inclinado e escorregadio, empurrando os jovens protagonistas contra o muro das suas ilusões, ou aquilo que podemos designar por uma outra forma de fugir e desertar, neste caso, da realidade presente e das responsabilidades inerentes que não souberam, não puderam, ou não quiseram assumir face ao futuro. São os estigmas do seu isolamento e da sua correspondente impotência existencial a virem ao de cima, antecipando as dificuldades de um novo mundo que acabava de ver o antigo desabar, sempre lá longe, para lá das montanhas, das escarpas e das rotinas que de alguma maneira protegiam aquele microcosmos da prefiguração do mal. Será por isso que uma das sequências mais fortes do filme não se refere ao espaço nublado de sombras e luz fria de Vermiglio, mas sim a um canto perdido de um cemitério siciliano iluminado pelo Sol. E será ali que Lucia, no recolhimento e dor, quebra finalmente as grilhetas físicas e espirituais do que fora a sua vida anterior.
Título original: Vermiglio Realização: Maura Delpero Elenco: Tommaso Ragno, Roberta Rovelli, Martina Scrinzi, Giuseppe De Domenico Duração: 119 min. Itália/França/Bélgica, 2024
No Festival de Veneza de 2024 recebeu o Leão de Prata, correspondente ao Grande Prémio do Júri.
No LEFFEST 2024 – Lisbon Film Festival – recebeu o Prémio Especial do Júri para Melhor Interpretação Feminina, atribuído não a uma mas ao conjunto das actrizes.