«The Gilded Age» é um melodrama de luxo, de inigualável opulência nas séries de televisão contemporâneas. É também um guilty pleasure, recheado de cenários e figurinos absolutamente magníficos num histórico trabalho de recriação de Nova Iorque nos anos 1880.
Ao vermos «The Gilded Age» vem à memória o livro de 1920, de Edith Wharton, “A Idade da Inocência”, que foi adaptado no memorável e homónimo filme de Martin Scorsese, em 1993. Acreditamos que o livro de Edith Wharton seja uma obra de referência para esta série e para os próprios actores. A série é baseada num manancial de figuras históricas, eventos e locais que dão uma dimensão de cápsula temporal, ou, se preferirem, de viagem no tempo, reescrevendo a própria memória desta era em Nova Iorque.
«The Gilded Age» é uma história de confronto, de dinheiro e egos poderosos numa época de ascensão económica dos Estados Unidos. No centro da série está a preservação da tradição das classes altas dominantes versus as famílias dos novos-ricos, ligadas aos titãs da indústria que começavam a surgir e a querer o seu lugar na alta sociedade nova iorquina. Primeiro, através das majestosas mansões, cheias de esplendor, e depois através dos eventos sociais na cidade.
A trama envolve inúmeros personagens e diferentes famílias, mas o núcleo da série centra-se em duas famílias que representam os novos-ricos (Russell´s) e o old money/a velha guarda (os Van Rhijn). A série lida com os aspectos gerais e particulares dessa colisão de mentalidades progressistas versus conservadoras. O influxo das abastadas famílias de novos-ricos, ligadas aos titãs da indústria americana, começam a rivalizar com o poder estabelecido das famílias que estão ligadas ao nascimento da nação. Relembramos que a América era considerado um terreno virgem, onde era possível alcançar a ascensão social apenas com dinheiro ou outros méritos (artísticos ou científicos), algo que não acontecia na sociedade europeia, devido aos títulos e às tradições centenárias. Era uma sociedade com novas regras, onde era possível a concretização do sonho americano. Há narrativas paralelas entre o humor e o drama, relacionadas precisamente com os vários “alpinistas” sociais que vão surgindo na série.
Marian Brook (Louisa Jacobson) é a protagonista desta série e também os olhos dos espectadores para este mundo dourado. É uma jovem órfã, com uma mentalidade aberta, que vai viver com as suas tias em Nova Iorque. Ada Brook (Cynthia Nixon, num papel mais púdico, mas que carrega a experiência da vida) e a matriarca da família, Agnes Van Rhijn (Christine Baranski, um dos bons desempenhos da série), cuja mansão fica do outro lado da rua dos novos-ricos mais populares da cidade: os Russell´s. Este é um mundo em mudança e as tias de Marian são apanhadas nesse turbilhão onde as lealdades são colocadas à prova. Marian é a personagem pivot, que vive entre barricadas que se estabelecem na alta-sociedade.
A outra figura central desta série é representada pela deslumbrante Carrie Coon, no papel de Bertha Russell, aqui num registo mais light, mas não deixando de ser intensa no que toca a (re)definir os padrões sociais de Nova Iorque. Ela procura integrar-se no poder estabelecido da velha guarda, mas não tem qualquer problema em criar uma nova alta sociedade quando se vê ameaça pelos poderes instituídos.
A segunda temporada foca o seu marido, George Russell (Morgan Spector), que dirige um império nos caminhos de ferro e que se vê ameaçado pelo mais poderoso sindicato de trabalhadores da América (que existiu de facto em Pittsburgh). George é um barão da indústria, mas tem um lado mais humano e isso denota-se na relação com Bertha e os seus filhos. Nesta mesma temporada as atenções desviam-se ligeiramente da filha dos Russell´s para o filho que prosseguiu a sua paixão pela arquitectura e descobre outros requintes…
Julian Fellowes é um especialista nesta dicotomia de upstairs/ downstairs [piso de cima/piso debaixo] – relembramos o fabuloso «Gosford Park» (2001), co-escrito por ele para Robert Altman e, evidentemente, a sua mais famosa criação: «Downton Abbey» (2010).
«The Gilded Age» tem uma dimensão estratosférica, a criação da HBO MAX entra num campo onde não há limites para o génio de Julian Fellows em termos narrativos e visuais. «Downton Abbey» nunca poderia aspirar a estes desígnios devido a limitações orçamentais. Contudo, criativamente, e sobretudo pela nata da interpretação britânica, essa série terá sempre um grande estatuto e um lugar especial no coração dos espectadores. Ambas as séries partilham a dinâmica de upstairs/ downstairs. Isso confere uma capacidade de apresentar tramas de várias classes sociais, mas também um constante comentário social aos próprios eventos no interior da série, as desaventuras dos patrões percecionados pela serventia das casas.
A finalizar, devemos acrescentar/reforçar que «The Gilded Age», graças a uma excelente pesquisa histórica, inclui uma narrativa que descortina um universo desconhecido e raramente visto nos ecrãs – e que existiu – da burguesia afro-americana em Nova Iorque, com os seus próprios jornais, negócios e muito empreendedorismo. A segunda temporada continua a explorar esse veio narrativo e inclusive faz o paralelismo entre Nova Iorque e a opressão racial no sul dos EUA.
«The Gilded Age» é um absoluto deleite visual e está em exibição na HBO MAX.
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº101, Inverno 2023]
https://www.youtube.com/watch?v=0dPzEpGd4O0