Houve um tempo em que um certo cinema alemão “oculto”, isto é, com poucas hipóteses de figurar no mapa de estreias em Portugal, nos chegava através da Mostra KINO, organizada pelo Goethe-Institut, em Lisboa. Esse tempo ainda é relativamente recente – afinal, a KINO só deixou de existir há dois anos – e proporcionava descobertas muito estimáveis: filmes de realizadores independentes fora do nosso radar (Thomas Stuber, Jan-Ole Gerster, Sophie Linnenbaum…), que deixavam no espectador qualquer coisa como uma impressãozinha duradoura, algo parecido com um traço de originalidade desgarrada, e a nostalgia de saber que deles não veríamos mais nada num futuro próximo.

Foi desses filmes que me lembrei com carinho ao ver «Ossos e Nomes», qual ovni simpático no circuito da distribuição portuguesa, primeira longa-metragem de um desconhecido alemão, Fabian Stumm, cujo gesto de cineasta se funde aqui com o ato da representação, num olhar “laboratorial”: note-se a sucessão de fundos brancos habitados pelas personagens, como se as suas relações estivessem a ser observadas à lupa do microscópio, sem ruído visual no entorno, para se sentir o movimento de células.

Dito assim, pode dar a ideia de um filme pretensioso; não é o caso. Centrado num casal do meio artístico de Berlim – um ator, Boris (o próprio Fabian Stumm), e um escritor, Jonathan (Knut Berger) –, «Ossos e Nomes» vai perscrutar a crise doméstica instalada que transborda para os “ossos dos ofícios” de ambos. Ou não fossem os ensaios para um drama íntimo, no caso de Boris, sob a direção de uma realizadora francesa, e o processo de escrita de um novo livro, no caso de Jonathan, espelhos criativos ideais para explorar as imperfeições humanas e as inseguranças do relacionamento.

Stumm, que se assume autor total (também assina sozinho o argumento), sabe exatamente como construir um plano, qual deve ser o tempo dramático desse plano e a energia, lúdica ou melancólica, que vai definir cada cena. Depois, a partir dessas unidades, trata-se de construir subtilmente um mosaico intergeracional, incluindo personagens como a sobrinha de nove anos de Jonathan, uma fedelha sem grandes limites morais para as brincadeiras (roubos em supermercados, telefonemas a marcar encontros com homens…), que se torna o ponto desestabilizador da angústia dos adultos. “No fim, somos todos ossos e nomes”, ouve-se dizer a certa altura. E este é o ensaio geral para a consciência da morte, com um sorriso nos lábios.

TÍTULO ORIGINAL: Knochen und Namen REALIZAÇÃO: Fabian Stumm ELENCO: Fabian Stumm, Knut Berger, Marie-Lou Sellem ORIGEM: Alemanha DURAÇÃO: 104 min. ANO: 2023

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