Os Espíritos de Inisherin

OS ESPÍRITOS DE INISHERIN

OS ESPÍRITOS DE INISHERIN

“Penso onde começam e terminam as glórias dos homens e concluo: a minha glória foi ter os amigos que tive”, segundo William Butler Yeats (1865-1939), um poeta da mesma terra, a Irlanda, de onde brotam os iracundos personagens de «Os Espíritos de Inisherin», uma aula de concisão narrativa, calcada numa espécie rara de “insulamento lírico”. Um termo decalcado das pesquisas sobre guião do historiador David Bordwell – delineada pelo professor de escrita audiovisual José Carvalho – a fim de definir um estado em que um personagem se encapsula na sua própria psiquê – ou na própria vaidade – para tecer sua própria verdade do mundo. Na direção milimétrica de Martin McDonagh, o insulamento corre por dupla via. Ela cabe tanto a Pádraic Súilleabháin (Colin Farrell, na mais madura atuação de sua carreira), um agricultor de ralas posses, quanto cabe ao objeto da sua dor, Colm Doherty (Brendan Gleeson). O que dói em Pádraic é não entender a razão de Colm, o seu amigo da vida toda, decidir, subitamente, não querer mais lhe sorrir, nem falar. O público também não é capaz de entender esse motivo, que mais parece uma “birra”, uma intolerante zanga vaidosa.

A cada minuto, os satélites daqueles dois personagens vão voando em torno do espectador de modo a revelar camadas por vezes apodrecidas daquele mundo, como o machismo, mal que acossa Siobhán (Kerry Condon), a empoderada irmã de Pádraic, que não se submete à sina que o povo daquela ilhota impõe às suas mulheres. Existe ainda o abuso silencioso que sofre o jovem Dominc, aldeão esplendidamente encarnado por Barry Keoghan, assolado pela cinta feroz do seu pai a cada descoberta que faz sobre a vida a cada instante do seu amadurecimento. Cada pessoa sobre quem McDonagh aponta os holofotes – numa estrutura novelesca, vista a partir «Em Bruges» (2008) e galvanizada no seminal «Três Cartazes à Beira da Estrada» (2017) – explode (ou implode) em cena, numa estrutura que abre novas veredas na espinha dorsal do seu storytelling. Cada novo vértice abre uma nova equação cujo valor do X da vida nem sempre pode ser calculado com números, com precisões – apenas com sentimentos alquebrados.

Laureado em Veneza com a Copa Volpi de Interpretação Masculina (Farrell) e o troféu de Melhor Guião (entregue ao realizador), «Os Espíritos de Inisherin» parte dessa particularíssima educação sentimental de McDonagh para dissecar os códigos da masculinidade no seu espaço mais profundo: a lealdade plena. Um substantivo que, quando espatifado, dói na alma. Daí o filme ser construído com cores ocres e uma fotografia de névoas. Tudo é obscuro no mar de signos espatifados de uma amizade rompida.

Título original: The Banshees of Inisherin Realização: Martin McDonagh Elenco: Colin Farrell, Brendan Gleeson, Kerry Condon, Barry Keoghan Duração: 114 min. Irlanda/Reino Unido/EUA, 2022

[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº90, Fevereiro 2023]