Produzido, escrito e realizado pelo veterano Francis Ford Coppola, senhoras e senhores sejam bem-vindos ao futuro utópico, a meio caminho do distópico, consubstanciado no filme «Megalopolis», a fábula por ele concebida para marcar o ano de 2024. Logo se verá se esta obra vai perdurar no TEMPO, essa entidade abstracta e por diversas vezes convocada ao longo dos 138 minutos que dura este complexo, multifacetado e arriscado empreendimento cinematográfico. TEMPO que passaremos a usar do princípio ao fim desta análise crítica com letras maiúsculas para o distinguir da quarta dimensão postulada pelo genial Albert Einstein. De facto, em «Megalopolis» o TEMPO não se insere num universo quadridimensional, nem a sua manipulação resulta de qualquer prática científica, sendo antes uma capacidade pessoal inerente a uma relativa subjectividade, melhor dizendo, um dom atribuído a um homem que, perante a consciência de o poder suspender, se comporta como um semi-deus, a saber, César Catilina (Adam Driver), controverso arquitecto e visionário. Na primeira vez que o vemos está no alto do Edifício Chrysler de Nova Iorque (mas a cidade chama-se agora Nova Roma) debruçado sobre o abismo de um “canyon” urbano. Parece que vai escorregar, quase não se aguenta no equilíbrio instável a que intencionalmente se expõe, e quando o pior parece ir acontecer diz: “Tempo, pára!” E o TEMPO “real” obedece ao verbal e o mundo fica congelado até que ele recupere o equilíbrio e muito provavelmente o bom-senso que o leva a recuar para a sua posição inicial. Está salvo e, para os devidos efeitos, ali se inicia a multiplicidade de narrativas de que iremos ser cúmplices activos se nos quisermos manter atentos ao muito que vai suceder do primeiro ao derradeiro fotograma. Porque, na verdade, ou entramos neste filme e aceitamos percorrer os carris da vertigem mais ou menos controlada, quaisquer que sejam as consequências, ou então melhor será sair na primeira estação ou apeadeiro.

Existem múltiplos pressupostos por detrás desta ficção, sendo a premissa mais visível a analogia entre uma sociedade dominada pela aristocracia plutocrática (poderíamos dizer, usando referências actuais, protagonista e herdeira das práticas do capitalismo selvagem, algumas das quais estão bem representadas na Bolsa de Valores de Wall Street) e as circunvoluções da antiga História de Roma, particularmente o ano de 63 a. C., ano da Segunda Conspiração Catilinária que de algum modo abriu as portas da República ao regime Imperial Romano. No contexto presente, o César Catilina de Francis Ford Coppola debate-se com um rival de peso, Franklyn Cícero (Giancarlo Esposito), o corrupto governador da cidade Nova Roma que, por diferentes meios e devido a diferenças de opinião relativas aos modelos de negócio a adoptar, procura impedir a construção do projecto MEGALOPOLIS. Para esta nova cidade dentro da cidade ser concebida de acordo com as melhores perspectivas de consolidação rumo a um futuro diverso e alternativo ao estado das coisas na actualidade proto-ficcional, César Catilina descobriu uma matéria de vanguarda, a Megalon. Por essa inovação foi-lhe atribuído o Prémio Nobel. Mas ele não luta apenas com o governador por uma questão passageira de poder e desentendimentos financeiros. Mal enterrada ficou, num pretérito relativamente próximo, a história atormentada da morte da sua mulher que Franklyn Cícero, na altura procurador, aproveitou para incriminar o seu já então opositor. Diga-se que a personagem fantasmática dessa mulher constitui uma das correntes frias que atravessa a narrativa de «Megalopolis». Possui mesmo uma função próxima do McGuffin hitchcockiano, ou seja, existe para justificar e impulsionar a acção, com uma diferença fulcral que a distingue do expediente usado pelo mestre do suspense. Por um lado a sua presença/ausência apresenta uma relativa “materialidade” física, mas por outro não sabemos nem nos será dada informação precisa sobre quem ela era ou podia ser no plano espiritual e na relação com o marido. Não obstante, a personagem interpretada por Adam Driver será condicionada pela sua memória, e esse facto influenciará igualmente os comportamentos do círculo que o rodeia, ao ponto de vermos outras personagens mergulhar num conjunto de contradições existenciais que se vão atenuar apenas quando César Catilina encontra novo motivo de paixão na filha do governador, Julia Cícero (Nathalie Emmanuelle). No processo de sedução mútua ambos irão descobrir que o dom de parar o TEMPO não pertence ao domínio do adquirido para sempre, e a que parecia ser uma namorada improvável vai desempenhar um papel fundamental na recuperação dessa faculdade por parte do seu novo amante. Digamos que, a partir do momento em que os dois se apercebem desse segredo maior da sua dupla e comum existência, o poder de construir a utopia parece estar ali ao virar da esquina. Só falta mesmo lançar as bases do futuro numa espécie de narrativa cripto-cristã que inclui a criança providencial e imune ao TEMPO, que sobrevive para além das vicissitudes e pedras fundadoras lançadas pela entidade paterna aparentemente reconciliada com o poder. Na prática, estaremos perante um novo semi-deus? Pergunta retórica a que só Francis Ford Coppola poderá responder. Mas suspeito que ele não queira revelar o segredo, porque isso seria lançar as bases de um novo filme que, na minha opinião, seria um erro fatal para a dimensão que ele quis dar a este. Muitos falam dos milhões investidos e alguns aproveitam para o criticar por algo que, muito francamente, não me interessa analisar nem um poucochinho. Só me interessaria se o dinheiro ou parte dele fosse meu e acontecesse o que aconteceu no passado ao produtor e realizador, sobretudo na sua MEGALOPOLIS a que chamou ZOETROPE STUDIOS: perder a maioria do investimento e ficar com a corda na garganta por causa de dívidas que andou a pagar durante anos e anos. Para mim, parece claro que Coppola quis dar uma dimensão multifacetada a uma obra que através de uma multiplicidade de referências e citações perdure como um sinal da sua arte e da sua capacidade aos oitenta e cinco anos de olhar o cinema de frente, no seu próprio TEMPO, sem medo do que o futuro possa ou não revelar, muito menos se vai fazê-lo perdurar no pensamento cinéfilo e não só.

Trata-se do filme de um César da sétima arte, que não desiste de construir o seu império baseado na visceral individualidade da sua forte personalidade. Por isso e muito mais vale a pena um visionamento solidário e não partidário ou sectário de «Megalopolis», que até pode nem vir a ser um grande sucesso de bilheteira, mas foi seguramente concebido com as entranhas de alguém que, com a Trilogia de “O Padrinho”, 1972-1990, com «Apocalypse Now», 1979, com «One From The Heart» («Do Fundo do Coração»), 1982, entre outros, ganhou há muito um estatuto merecido e muito especial, não apenas no cinema americano mas mundial.
Do ponto de vista estrutural, destacaria ainda a excelência da banda sonora, sobretudo dos efeitos sonoros que permitem usufruir e compartilhar as atmosferas crepusculares quentes e hipnóticas da fotografia.
Título original: Megalopolis Realização: Francis Ford Coppola Elenco: Adam Driver, Giancarlo Esposito, Nathalie Emmanuel, Aubrey Plaza, Shia LaBeouf, Jon Voight, Laurence Fishburne, Jason Schwartzman Duração: 138 min. Estados Unidos, 2024