Page 97 - Revista Metropolis 123
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     LEGADO MISSÃO IMPOSSÍVEL
                                                              Instetten, numa atitude que resulta de uma brutal
                                                              quanto luminosa contradição, ou seja, para alcançar a
                                                              paz interior ela necessita de expiar a culpa, expiação
                                                              acompanhada do reconhecer da razão, o que quer
                                                              que  isso  seja,  subjacente no  comportamento e  nas
                                                              dramáticas opções do seu ex-marido. Mais romântico
                                                              do que isto, mais sofrido do que isto, mais verdadeiro
                                                              do que isto, seria difícil encontrar num filme do
                                                              senhor Rainer Werner Fassbinder. E não pensem que
                                                              descrever as grandes linhas do argumento faz algum
                                                              mal. Antes pelo contrário, ao longo do visionamento
                                                              o  que mais importa  ao  espectador  atento e  cinéfilo
                                                              passa pelo inegável deleite inerente ao exercício
                                                              de descobrir cada pormenor, cada movimento de
                                                              câmara, o posicionamento dos actores e o rigor dos
                                                              enquadramentos, a linguagem cinematográfica em
                                                              plena conjugação com a matriz literária do guião.
                                                              Numa palavra, a matéria de que são feitos os sonhos.
                                                              Para além da excelente cópia, destaque maior para a
                                                              Direcção de Fotografia de Dietrich Lohmann e Jurgen
            diferente, com outras implicações de natureza pessoal,   Jurgens,  um  preto  e  branco  deslumbrante  obtido  a
            se começa a fazer sentir, quando Effi passa a conviver   partir de negativo 35mm, cor. Nesta área específica,
            de perto com um galante oficial, o Major Crampas (Ulli   nota máxima para o modo como o realizador coordenou
            Lommel). Na ausência do marido, que será chamado   com os responsáveis pela cenografia e pela fotografia,
            para funções políticas, Effi acentua a proximidade da   nos seus mais diversos aspectos, o muito criativo jogo de
            relação com o seu novo amigo, facto que anos depois   interacções a partir de imagens reflectidas nos espelhos
            irá dar lugar a um conflito entre homens que, cada um   que, por diversas vezes, permitem anular, por exemplo,
            com a sua intensidade, amam a mesma mulher. Tudo   a noção clássica de campo/contra-campo, acentuando
            acaba num duelo. Será o fim do Major, mas igualmente   no fotograma uma espécie de composição áudio e visual,
            o ponto final de um casamento assombrado.         muito próxima das gravuras sob a forma de vinhetas e
            Divorciada, Effi vive agora numa situação que nada se   de outras populares iconografias novecentistas. Não
            compara ao conforto da alta burguesia onde nasceu e   são muito frequentes os grandes planos, mas há um
            viveu os anos de casada. Transfere-se para um pequeno   que surpreende e supera os que por lá se vislumbram:
            apartamento em Berlim, onde esporadicamente recebe   o rosto de Hanna Schygulla, ou seja, Effi Briest, perto
            a filha, Annie, visivelmente educada de acordo com   do fim do filme e do seu fim enquanto personagem,
            os princípios repressores do pai, que ficou com a sua   que faria inveja a uma Greta Garbo ou a uma Marlene
            guarda. Effi não suporta ver a rapariguinha como um   Dietrich, fotografadas pelos geniais William H. Daniels
            macaquinho amestrado, um papagaio sem alma e sem   e Lee Garmes, só para citar dois nomes maiores dos anos
            o fulgor próprio de uma criança, e cai desesperada   de ouro da grande indústria de Hollywood. Trata-se de
            numa crise existencial que finalmente chama a atenção   um momento sublime, em que ela regressa ao baloiço da
            e convoca a má consciência do pai e da mãe, que   juventude e confessa ao Pastor Niemeyer, na sequência
            aceitam cuidar dela, mas num período que se revela   de antigas recordações, que outrora o vento lhe dava a
            dia após dia mais sombrio e depressivo, mergulhada   sensação de voar para o céu. E pergunta: “Será que vou
            que está num clima prenunciador da morte que parece   para lá?” E o Pastor acabará por responder: “Sim, Effi.
            inevitável.  Por  estranho  que  pareça,  Effi,  nos  seus   Vais para lá.” Fundido a branco. Está dito, um filme para
            derradeiros momentos, acaba por perdoar o Barão   ver e rever. jgb
                                                                                        METROPOLIS OUTUBRO 2025    97





