Penélope Cruz, com 48 anos, chegou àquele ponto da carreira em que os filmes se podem fazer só da sua presença no grande ecrã. Já era um pouco isso que se sentia com «Mães Paralelas», de Pedro Almodóvar – embora o universo do realizador espanhol tenha a sua força própria –, e fica ainda mais evidente em «L’Immensità – Por Amor», um filme que parece nascer da sua potente imagem feminina e repousar nela toda a ternura. Emanuele Crialese assina aqui a sua obra mais pessoal, baseada em memórias familiares, e escolheu Penélope para representar o tipo raro de mulher que resiste à normalização social. Toda ela é amor pelos filhos, no seio de um casamento disforme, e lufada de ar fresco na Roma dos anos 1970: veja-se uma das cenas iniciais de «L’Immensità», em que esta mãe desata a dançar e cantar com a pequenada o tema Rumore, de Raffaella Carrà, enquanto juntos põem a mesa para o jantar. É tão inesperado quanto mágico, e assinala o primeiro de vários momentos escapistas com que Crialese ilustra o seu postal de recordações de um tempo.

Dos três filhos de Clara (Cruz), a mais velha é um caso subtil de disforia de género, uma adolescente que se veste e apresenta como um rapaz, vivendo a própria infelicidade doméstica como uma extensão do seu desconforto corporal. Ela é, sem dúvida, a grande aliada da mãe, com quem partilha um vínculo profundo, mais forte do que a lei natural da maternidade. É como se se compreendessem para além das palavras, num filme que também se apoia em silêncios eloquentes para reduzir a sensações a ideia geral de uma época e lugar.

No centro de tudo está a resplandecente Clara/Penélope, um corpo sensual e espontâneo, parcialmente fechado numa gaiola imaginária, que destoa das outras figuras femininas adultas pelo olhar infantil que preserva na rua e nos encontros sociais. No fundo, ela é a expressão suspensa daquela década, numa cidade que se estava a construir e reformular à volta de novas ideias, apesar da ferrugem dos arquétipos familiares.

Crialese não tenta forjar uma narrativa tradicional, com princípio, meio e fim. O que lhe interessa é o sabor agridoce do processo da memória, uma espécie de colagem livre que permite captar a essência de determinadas emoções, enquadradas por certas situações. Um exercício delicado mas suficientemente agudo na leitura sentimental, e bafejado de fantasia em engenhosas sequências musicais que evocam o espírito pop italiano da época.

Título Original: L’Immensità Realização: Emanuele Crialese Elenco: Penélope Cruz, Vincenzo Amato, Luana Giuliani Duração: 97 min. EUA, 2022

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº94, Junho 2023]

https://www.youtube.com/watch?v=33z356l-iS8
ARTIGOS RELACIONADOS
Mães Paralelas
MÃES PARALELAS

Pedro Almodóvar narra a alma feminina como poucos e «Mães Paralelas» é mais uma prova da mestria do cineasta espanhol Ler +

Para Roma com Amor
PARA ROMA COM AMOR

Antes de escrever este filme Woody Allen talvez tenha andado a ler alguns autores sul-americanos normalmente conotados com aquilo que Ler +

O Conselheiro/The Counselor
O CONSELHEIRO

Tanto prometia, mas tão pouco cumpriu… «O Conselheiro» é um verdadeiro exemplo de desperdício hollywoodiano: um leque de actores fabuloso Ler +

UM CRIME NO EXPRESSO DO ORIENTE

Não é preciso muito para resolver este ‘crime’: o culpado é Kenneth Branagh. O bigode farfalhudo anunciava a caricatura e Ler +

Please enable JavaScript in your browser to complete this form.

Vais receber informação sobre
futuros passatempos.