Depois de concorrer à Palma de Ouro dois anos seguidos, com «O Jogo da Rainha» («Firebrand», 2023) e «Motel Destino» (2024 Karim Aïnouz [foto] volta ao Festival de Cannes agora num posto de mentoria num projeto que ambiciosa fortalecer o cinema cearense, numa valorização das estéticas do seu estado natal. Como realizador, ele hoje finaliza «Rosebush Pruning», uma releitura do filme de culto «De Punhos Cerrados» [«I pugni in tasca»] (1965), de Marco Bellocchio, com Elle Fanning e Pamela Anderson, que deve ficar pronto para o Festival de Veneza, em agosto. Até lá, o cineasta faz a promoção internacional das quatro curtas-metragens do projeto Directors’ Factory Ceará Brasil, que marca a abertura da Quinzena de Cineastas na próxima quarta-feira, 14 de maio.
A exibição acontece das 11h45 às 13h30 no Théâtre Croisette (50, La Croisette – esquina com a rue Frédéric Amorretti, ao lado do hotel JW Marriott), com apresentação dos filmes seguida de uma sessão de perguntas e respostas com os realizadores.




Realizados por jovens talentos do Norte e Nordeste do Brasil em colaboração com cineastas de Cuba, Portugal, França e Israel, as quatro curtas formam um mosaico multicultural ancorado em experiências diversas. São elas: «A Fera do Mangue», de Wara (Ceará) e Sivan Noam Shimon (Israel); «A Vaqueira, a Dançarina e o Porco», de Stella Carneiro (Alagoas) e Ary Zara (Portugal); «Ponto Cego», de Luciana Vieira (Ceará) e Marcel Beltrán (Cuba); e «Como Ler o Vento», de Bernardo Ale Abinader (Amazonas) e Sharon Hakim (França). Todos os filmes foram realizados em Fortaleza e envolveram mais de 100 profissionais cearenses da cadeia produtiva do audiovisual. O projeto é uma parceria da Secretaria da Cultura do Ceará com a Quinzena de Cineastas, por meio do Instituto Mirante de Cultura e Arte, Instituto Dragão do Mar, e produção da empresa Cinema Inflamável, com Janaina Bernardes e a coprodutora francesa Dominique Welinski.

Paralelamente, Cannes ainda fala de «Motel Destino» [foto], que pode ser alugado nas plataformas digitais Rakuten TV e Filmo no Brasil e visiono nos Canais TVCine em Portugal. Todos dias, e a toda hora, encontra-se areia nas camas da hospedaria para amores fugazes retratada na longa de Karim, localizada à beira de estrada numa praia do Ceará, distante da agitação da grande cidade. A funcionária Dayana é quem mantém a organização dos quartos. Ela ri quando fica nervosa. Ri num desatino, tensa, quando o perigo se aproxima, mas sabe se zangar com clientes que inventam desculpas, fazem orgias ou arranjam motivos para não pagar. Pensou que esse era o caso do jovem Heraldo quando o rapaz alegou ter sido roubado pela jovem com quem passou a noite, antes de adormecer e acordar sem bem algum. O sujeito, contudo, relatava a verdade. Não toda. Ele não contou, por exemplo, que está jurado de morte e que acabou de ver o seu irmão assassinado. Ia matar um francês que mora na região daquele Motel, a mando da sua chefe, numa organização criminosa, mas atrasou-se para a missão – o que deu ruim… muito ruim. Apesar disso, Dayana se encanta por ele e tenta disfarçar o desejo que sente, a tentar não dar sinais para o seu companheiro (e também o seu chefe), Elias (papel que pode dar a Fábio Assunção uma consagração há muito merecida no grande ecrã). A vontade que ela tem de se livrar desse homem que só lhe trata bem quando quer fazer sexo é grande. Ela, todavia, sabe quem tem direito a um percentual bem alto na faturação do Motel Destino, pois, afinal, trabalhou para isso. O problema é como tirar Elias do jogo e se apropriar do que acredita ser seu.

Até essa interrogação vir à tona, Dayana arrebatou por completo a plateia do novo filme de Karim Aïnouz, exibido em competição no 77º Festival de Cannes. Esse arrebatamento se dá graças ao desempenho inquieto e cativante da sua intérprete, Nataly Rocha. O seu modo franco de falar encaixa-a num rol de personagens latino-americanos que se expressam sem filtros, sendo direta e cortante. Igualmente arrebatador é o desempenho de Iago Xavier como Heraldo, um sonhador que anseia pela chance de ter a sua oficina mecânica em São Paulo, deixando a rotina cearense para trás. Já Elias só pensa em ampliar o seu motel. Vai para Fortaleza comprar brinquedos eróticos e pensa em obras para melhorar o atendimento. Ele só não pensa no bem-estar de Dayana. Nem é capaz de imaginar a trama digna de um filme dos Irmãos Coen (como «Sangue por Sangue» [«Blood Simple »] ou «Fargo») que se desenha ao seu redor.
Apoiado na caleidoscópica fotografia da francesa Hélène Louvart, Karim deu a Cannes um filme surpreendente, que se inscreve nos códigos do thriller noir (sobretudo o dos anos 1980), numa toada tropical, ao mesmo tempo em que presta um tributo à “pornochanchada” – embora sem humor. É um estudo delicado de personagem, que tenta compreender os resquícios de Brasil por detrás de cada vértice do seu triângulo. Passa pela violência contra as mulheres, o crime organizado, a corrupção e o machismo, desconstruindo cada um desses males no argumento escrito com Wislan Esmeraldo e Maurício Zacharias. Visualmente, a direção de arte de Marcos Pedroso faz do motel Destino um quarto – e vivíssimo – personagem, que serve de microcosmos para abismos onde o Brasil está enfiado até o pescoço.
No Brasil, «O Jogo da Rainha» (“Firebrand”) acabou por estrear na Prime Video da Amazon, em Portugal estreou nos Canais TVCine.