«Girls Will Be Girls», 2023, primeira longa-metragem da argumentista e realizadora Shuchi Talati (e não primeira obra, porque não devemos ignorar as curtas e documentários anteriormente inscritos na sua filmografia) propõe uma viagem a um passado relativamente recente da União Indiana, incidindo sobretudo no quadro da vida académica e num certo contexto de relações amorosas e familiares, dominado por preconceitos de classe e de casta que ainda hoje prevalecem.
Por breves apontamentos inseridos no processo narrativo (fala-se de gravações em cassette e no uso de um Walkman) deduzimos que a acção decorra nos anos oitenta-noventa do século passado. Essa viagem dirige ainda a nossa atenção para uma região situada no sopé da cordilheira dos Himalaias onde vive a protagonista, Mira (Preeti Panigrahi). No início do filme e ainda com uns inocentes dezasseis anos, Mira será nomeada para o papel de aluna-modelo num internato elitista que, apesar de misto, continua a discriminar os géneros face a um certo número de liberdades vistas como “perigosas” entre o mundo viril dos rapazes e o supostamente mais recatado das raparigas. Por exemplo, nas aulas há uma divisão clara entre alunos do sexo masculino e feminino. De igual modo, na fixação de normas e regras de conduta que procuram defender a perpetuação de certos atributos morais, iremos assistir a prelecções sobre a altura das saias ou sobre as meias das raparigas que se querem subidas e não descaídas, entre outras limitações alicerçadas na repressão dos impulsos naturais do que se pode chamar, considerando a média de idades dos estudantes, sinais do natural despertar da sua sexualidade. Mas pior do que as questões de natureza comportamental são as que colocam a condição feminina numa espécie de segunda divisão da competência para exercer funções de responsabilidade e, porque não dizê-lo, de poder. Todavia, será desde cedo que vemos Mira assumir o lugar de Head Prefect (Prefeito-Chefe) do referido colégio, ou seja, ela passa a ser a monitora e modelo pelo qual os restantes estudantes devem nortear a sua presença na instituição, a representante dos alunos em cerimónias de alguma relevância, aquela de quem se espera a organização de um conjunto significativo de actividades escolares e não só. Numa palavra, o exemplo imaculado da eficácia e da correspondente disciplina num contexto que, por ser privilegiado, foi concebido para destacar o melhor e não o pior do estatuto social dos filhos-família, futuros cidadãos que se querem igualmente exemplares e, quem sabe, os mais preparados para liderar os destinos do país.

Naturalmente, sempre numa perspectiva de formatação de classe e de casta. No entanto, ao assumir responsabilidades como “rainha” das boas práticas, Mira recebe de algum modo um presente envenenado porque, a partir daquela delegação de funções, passa a sentir que o seu comportamento e percurso escolares passaram a ser escrutinados ao pormenor. Sente mesmo que há quem esteja preparado para a condenar ao primeiro e mínimo deslize. Preocupação que cresce no seu íntimo e que não esconde mesmo junto das suas colegas mais próximas, e algumas bem mereciam reparos pelo modo como coreografam os seus impulsos e desejos junto dos rapazes. Será então aqui que a realização aproveita para introduzir uma palhinha na engrenagem e precipitar a convulsão interior de Mira que, por um acaso mais ou menos fortuito, mas provavelmente nada ingénuo, quebra a resistência das suas convicções, geradas por uma cartilha ancestral herdada de geração em geração, e passa a namorar com Sriniva (Kesav Binoy Kiron), filho de um diplomata, que passara a infância em Hong-Kong e será apelidado de “estrangeiro” pelos seus colegas, digamos, mais “nacionalistas”. Este epíteto, aliás, não surge como uma simples e mera provocação. Pelo contrário, reflecte o ambiente que se vivia na União Indiana numa altura em que o país se abria a investimentos oriundos de países ocidentais, que muitos viam como a porta de entrada de idiossincrasias não desejadas e que até ali eram pouco habituais, ou muito raras, no contexto dos mais conservadores valores culturais indianos. Por outras palavras, era a “depravação ocidental” contra a “virtude indiana”.

Mira, metódica como era, vai encarar esta relação como uma nova prova de vida. E para controlar as suas eventuais consequências irá procurar informação detalhada sobre a “mecânica” da vida sexual e os “mistérios do organismo”. Será mesmo impelida a experimentar um orgasmo provocado por masturbação no silêncio e recato do seu quarto. Mas a presença de Sriniva no espaço alargado do seu círculo íntimo faz-se sentir cada vez com maior intensidade e frequência. E quando finalmente o jovem vai a casa de Mira dá-se novo salto em frente, não só no campo do amor físico e espiritual (por aquela altura limitado a uns beijos e confissões amorosas e pouco mais), mas igualmente no plano das sombras que ameaçam as relações com o namorado ao sentir o crescente desconforto desse demónio chamado ciúme, reverso desse outro velho demónio chamado amor. E por quem vai ela nutrir esse sentimento que corrói a alma de qualquer um? Precisamente pela mãe, a carismática Anila (interpretada por Kani Kusruti, que vimos recentemente no filme “Tudo O Que Imaginamos Como Luz”). Pouco a pouco, esta mulher de forte personalidade, com o marido ausente e determinada a proteger a filha que deseja criar como a melhor das alunas e a mais apta das mulheres, mas flexível ao ponto de aceitar a relação dos dois adolescentes, ao constatar uma certa maturidade no modo de ser e estar de Srivina passa a dar uma atenção especial ao sedutor namorado da filha. Dali para a frente irá permanecer no ar uma ambiguidade latente que por vezes nos faz interrogar sobre a verdadeira dimensão do que aqui e além vemos, ou seja, a franca aproximação da mulher/mãe a Sriniva. Numa das sequências que melhor consubstanciam essa atração mútua veremos mesmo o rapaz a dormir no quarto de Alina (segundo se diz, a descansar, porventura para não acender o rastilho de apreciações perversas ou redutoras), e isso com a filha quase sempre numa divisão contígua. Dito isto, serão estas e outras “revoluções” no domínio da moral institucionalizada que irão influenciar o pulsar sensual dos diferentes protagonistas. Todavia, o ponto culminante será o que se verifica após a materialização carnal e plena da relação amorosa entre Mira e Sriniva, que mais adiante espoleta uma vaga delatória e persecutória que atinge Mira no interior da escola, promovida por aqueles que se apoiam e servem das suas regras e espartilhos ideológicos para validar a normalização da sociedade a que pertencem e onde os seus valores mais reacionários se integram. Neste quadrante da narrativa, o posterior desenlace de “Girls Will Be Girls” pode ser encarado como um manifesto a favor de uma outra visão do mundo onde os olhares femininos e masculinos não deviam viver separados da realidade circundante. Na verdade, o mundo exterior onde homens e mulheres se podiam e deviam erguer numa plataforma existencial comum, seguramente mais complexa e rica do que aquela que o pensamento dominante insiste em perpetuar.
Entre outros, no Festival de Sundance de 2024 «Girls Will Be Girls» recebeu o Prémio do Público para Melhor Drama na categoria World Cinema, e a Preeti Panigrahi, que defendeu o papel de Mira, foi atribuído o Prémio Especial do Júri para a Interpretação.
Título original: Girls Will Be Girls Realização: Shuchi Talati Elenco: Preeti Panigrahi, Kani Kusruti, Kesav Binoy Kiron Duração: 118 min. Índia/França, 2024