Cotado para o Oscar com «Highest 2 Lowest», de Spike Lee, Denzel Washington hoje atrai olhos cinéfilos para atuações memoráveis do seu passado que não tiveram o devido aporte dos mídia e tão pouco a atenção merecida das plateias, como é caso de «As Pequenas Coisas» («The Little Things», 2021). Batizada no Brasil de «Os Pequenos Vestígios», essa nevrálgica narrativa acabou por ser fustigada pela pandemia, em tempos nos quais o desmame do confinamento mantinha as salas de exibição vazias. Agora, no streaming, na MAX, as suas potências podem se fazer notar e aplaudir. Na sua dianteira vem um Denzel em estado de graça.
Compara-se muito este thriller personalíssimo do diretor texano John Lee Hancock («The Founder») com a obra de Clint Eastwood e com os suspenses de David Fincher, o que, em si, já é uma incongruência, por serem filmografias sem qualquer semelhança. A sua arrecadação nas bilheteiras ficou-se na marca dos US$ 30 milhões. O seu maior destaque é a figura repulsiva que Jared Leto cria, num trabalho com ecos de Klaus Kinski, o que dá dimensão quase mefistofélica a uma longa-metragem que se propõe ser um estudo sobre culpa, sobre remorso e sobre cumprimento do dever.
Leto é um dos titãs de um elenco que ainda traz Rami Malek, num primeiro trabalho público pós «Bohemian Rhapsody», pelo qual ganhou um merecidíssimo Oscar, em 2019. No comando aparece Denzel, num clima que resgata um de seus melhores trabalhos: «Possuídos» («Fallen», 1998). Este cult dos anos 1990 era uma investigação policial regada pelo sobrenatural, com uma manifestação de Satã ente os mortais. Agora, na longa de Hancock, a espiritualidade de verve satânica dá lugar à materialidade mais mundana, fedida ao cheiro do adstringente usado em bordéis e motéis de quinta e ao perfume de sangue pisado. O tónico de consciência pesada que parece ancorar o policial Joe Deacon (Washington) ao passado faz com que o argumento do próprio Hancock (escrito há décadas) evoque mais a atmosfera doentia de «Cão Danado» [«Stray Dog»] (1949), de Akira Kurosawa (1910-1998), do que o humanismo de Eastwood e a taquicardia de Fincher. Há uns tempos, Deacon cometeu um erro feio e caiu em desgraça consigo mesmo.

Em «The Little Things», ele é chamado lá do condado de Kern para investigar uma série de assassinatos que ninguém parece ter estômago para encarar, fora um detetive recém-transferido, que faz da arrogância o seu distintivo: Baxter (Malek, brilhante em cena). Com a sua cara de Jeffrey Hunter, Baxter vai percebendo que Deacon esbanja o que lhe falta: experiência. Logo, a presença dele é essencial, sobretudo quando a triagem pelo possível responsável pelos crimes periga ser um eletricista de modos nada digeríveis, Sparma, papel de Leto.
O seu personagem em «As Pequenas Coisas» é algo que causa asco. A maldade transbordante dele assusta-nos por abrir uma instância de reflexão sobre os deslizes minúsculos que nos derrubam e sobre as insistências que nos levantam. Ainda que seja uma insistência naquilo que nos amaldiçoa. Eis uma pérola com Denzel a ser redescoberta.
Título original: The Little Things Realização: John Lee Hancock Elenco: Denzel Washington, Rami Malek, Jared Leto Duração: 128 min. EUA, 2021