O lobisomem, talvez na sua digna mitologia, mas aqui recuperada na sua forma mais primitiva, é um alegórico reflexiva das bestas que reprimimos. Uma criatura presa entre a civilização e a selvajaria, uma transformação que revela o pior de nós, que segundo esta releitura modernizada por parte de Leigh Whannell, não é mais, nada menos que uma figuração da masculinidade reprimida por esta sociedade contemporânea que teima em pregar a subversão dos papeis sociais.  Desta vez, esquecemos Londres, as mariphasas e as neblinas, assim como as luas cheias, é a América profunda, florestal e assombrada por histórias de outras gerações (e tribos), local, esse, onde o homem — literalmente — se perde. Christopher Abbott assume o papel de um pai doméstico, passivo, que, numa metamorfose grotesca, se torna nessa feralidade incontrolável. O possível “retroceder” ao homem ativo? Enquanto isso, Julia Garner contracena como uma mulher emancipada, uma antítese do tradicional papel maternal que porventura terá que recuperar neste jogo de “gato e rato” ou melhor, “jogo de licantropos e presas”. Whannell usufrui da figura do lobisomem como metáfora para essa repressão: um homem de masculinidade ameaçada, e por outro lado, uma mulher que rejeita o molde da “final girl” submissa. Os simplismos são evitados: ambas as personagens são sintomas de uma sociedade doente, onde as mudanças sociais desencadeiam respostas igualmente destrutivas, e ambos são dialogicamente incompatíveis, a câmara submete a essa questão de perspetiva de forma criativa e alusiva. Se «O Homem Invisível» (2020) era uma alegoria sobre abuso e violência doméstica, «Lobisomem» propõe uma discussão mais ampla e menos evidente. É um exercício algo fantasioso do que acontece quando os papéis sociais colapsam, e quando a civilização falha redondamente em domar os instintos mais primitivos. A besta licantrópica não é um vilão; antes, um espelho das tensões subjacentes, da luta entre o velho e o novo, entre saudosismo e progresso. O filme joga com essas dinâmicas, com Leigh Whannell, em conjunto com um produto assumidamente autoral (Jason Blum), a prestar-se aos benefícios do baixo-orçamento para, dois uma, inventir o facilitismo tecnológico (já lá vamos) e consolidar a essência do terror, o medo, como aquilo que sempre fora, analogias do nosso mundo. Quanto à metamorfose, o horror emerge dessa mesma transformação: músculos que se dilatam, feridas que se rasgam numa podridão instantânea e ossos que se remodelam, tudo filmado no signo da visceralidade body horror que deixaria orgulhoso Cronenberg, mas num um controlo contido, e o melhor de tudo, dando umas quantas bofetadas a Robert Eggers armado em pingarelho no seu «Nosferatu», a distância possível e imaginária dos faceis jumpscares. Com criatividade e engenho, Whannell não reinventa totalmente o mito do lobisomem como fizera com o antagonista originário de H.G.Wells, apenas encontra formas de o tornar novamente ameaçador e contemporâneo. E a verdade é que em tempos de sobreliteralidade (basta buscar exemplos como «A Substância», do qual nada deixa ao espectador), «Lobisomem» resgata o terror como espaço de reflexão, um género que ainda pode falar sobre o mundo e sobre nós. Depois dos fracassos em reutilizar a sua galeria de monstros clássicos (não esquecer que houve uma Múmia com Tom Cruise, ou de um Drácula super-heroico), a Universal Pictures parece ter encontrado a solução, com menos custos e mais criatividade. Viva Whannell!

Título original: Wolf Man Realização: Leigh Whannell Elenco: Christopher Abbott, Julie Garner Duração: 103 min. EUA, 2025

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