«True Detective – Night Country» atinge novamente o patamar criativo que a tornou a antologia numa série policial sem paralelo pela sua originalidade e singularidade. 

A HBO Max regressou ao terreno fértil de True Detective, uma série antológica criada em 2014 por Nic Pizzolatto, num mergulho entre o policial e o american gothic. O que conectava as temporadas era precisamente o mistério e o lado bizarro dos acontecimentos. As narrativas eram herméticas em cada temporada. A excelência das três temporadas anteriores de True Detective fez-se através da qualidade da sua produção, as histórias rebuscadas e o talento em frente e por detrás das câmaras.

«True Detective – Night Country» mantém as suas raízes góticas com a mistura entre o real e o mito, entre o policial e o drama. Issa López assinou a criação da quarta série e traz um ritmo diferente a esta história. Enquanto as outras temporadas centravam-se essencialmente em personagens masculinos, esta série tem duas mulheres nos papéis centrais. A nível das histórias pessoais e enredo policial a narrativa apresenta outro tipo de relações afectivas que já faltavam a este universo e que enriquecem esta antologia. As alterações criativas mudam totalmente o espectro da série. Ao longo dos seis episódios entendemos a verdadeira dimensão do lugar do feminino como o papel central da trama numa espécie de grito de libertação do papel da mulher numa comunidade dominada por homens.

A evolução dos acontecimentos faz-se através do inesperado, com o piscar do olho para a mitologia gótica, envolvendo um crime violento no passado que nunca foi resolvido e a descoberta grotesca no presente. Ambos os casos podem estar interligados e temos toda uma metodologia de investigação entre o cruzamento de provas, pistas e instinto para encontrar o mistério desta quarta série de luxo. Há um trabalho realmente de detective e que nos envolve do primeiro ao último episódio. E sempre com um pano de fundo do mito e do sobrenatural bem próximo dos acontecimentos.

Em termos culturais há também a presença da herança das comunidades indígenas do Alasca que trazem consigo um peso não só da tradição, mas também da discriminação e opressão durante séculos por parte do homem branco. Uma das personagens centrais, a Detective Evangeline Navarro (Kali Reis é a revelação desta série), é uma figura que procura a sua identidade e está perdida entre o desejo pela verdade e a justiça de uma comunidade oprimida. Neste caso investiga um violento crime de uma jovem indígena que era activista local contra a permanência e a poluição de uma mina numa pequena cidade operária do Alasca onde se desenrola a série. A vítima foi encontrada morta de uma forma indigna e violenta. Evangeline Navarro (Kali Reis) foi uma ex-agente da polícia local que alia esforços à chefe de polícia, Liz Danvers (Jodie Foster), que investiga um crime dantesco após o desaparecimento de oito homens de uma estação de investigação científica.

Liz Danvers é uma agente perspicaz, mas um ser humano intragável (que acaba por conquistar os espectadores). A sua história pessoal irá ser revelada ao longo da temporada, o porquê de estar longe da metrópole e afastada dos acontecimentos, a complicada ligação com a sua filha, a relação com a agente Navarro e a sua profunda dor, entre outros importantes detalhes.

A dor define profundamente os personagens centrais na evolução deste policial. Podemos afirmar que cada episódio está muito bem composto e doseado entre a evolução do mistério (por vezes com incursões no thriller a roçar o terror) e o conflito interno dos personagens.

À escuridão do enredo alia-se a própria natureza do local: o frio gélido do Alasca e a noite profunda que dura vários meses. É uma mudança radical no cenário, o calor das temporadas anteriores é substituído pelo gelo e a escuridão (a rodagem foi efetuada na Islândia). A direcção de fotografia encontrou mesmo na noite escura a beleza das imagens que se alia ao som para fazer despertar mais um personagem activo nesta série. O resultado final é muito mais satisfatório, diria, mesmo luminoso por entre as trevas onde há uma conclusão plausível do macabro e enigmático crime central e a própria viagem das protagonistas desta história.

Após o tremendo desempenho de Jodie Foster podem reservar o seu merecido Emmy por esta interpretação. É a sua melhor actuação desde os anos 2000. Estamos a escrever sobre uma grande dama da representação dos últimos 50 anos que merece todo o nosso respeito e reverência. A actriz não deixou os seus créditos por mãos alheias e puxou dos galões num papel que está colado às grandes interpretações da sua magnífica carreira. Jodie Foster está rejuvenescida, é uma das grandes vencedoras desta série ao lembrar ao mundo que se houver papéis dignos da sua categoria o mais certo é termos uma grande interpretação. Ela está electrizante no ecrã, num papel ultracomplicado do ponto de vista físico e mental, com várias nuances psicológicas a tecerem a sua existência nesta personagem. Jodie Foster foi muito bem coadjuvada não só por Kali Reis como outros belos actores, como Finn Bennett (o adjunto de Danvers), Christopher Eccleston (num papel curioso), Fiona Shaw, que dá o ar da sua graça, as jovens actrizes Isabella LaBlanc e Anna Lambe e o grande John Hawkes – é sempre um mimo vê-lo a representar. A série manteve a bitola na qualidade de representação que foi sempre uma das marcas de True Detective, basta ver os anteriores elencos…

É indiscutível: a série tem o cunho e a qualidade HBO. Apesar de também vir à memória «Mare of Easttown» (outra minissérie da HBO Max) «Night Country» é mesmo uma viagem às profundezas do mal e à complexidade do ser humano, numa representação destas facetas que são impossíveis de dissociar entre a dimensão pessoal e a investigação policial. A série também tem a capacidade de lutar contra essas forças do mal graças à determinação das mulheres no papel central desta história. É de louvar a qualidade do trabalho dos actores, da produção, a dimensão e a representatividade desta história. Issa López está de parabéns por injetar vitalidade nesta antologia de culto. «True Detective – Night Country» tem o lugar assegurado entre as grandes séries de 2024.

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº102, Janeiro 2024]

  • Premiado nos Globos de Ouro 2025 MELHOR ATRIZ EM MINISSÉRIE, ANTOLOGIA OU TELEFILME para Jodie Foster
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