«Shogun», da Disney+, é uma obra-prima. É um épico de guerra centrado nos jogos de poder no Japão Feudal, um romance sedutor e uma viagem da alma num mundo desconhecido.
A METROPOLIS teve a possibilidade de ver a série completa e está rendida perante o sublime e o impressionante sentido de escala para televisão. Em termos de recriação histórica de época na televisão não nos recordamos de alguma vez ter visto algo semelhante ou próximo de «Shogun». Já estamos a ver a série pela segunda vez – é impossível capturar todo o esplendor e os detalhes de cada episódio em apenas um visionamento. A produção não se poupou a esforços na recriação do Japão Medieval na elaboração de uma atmosfera intrincada e profundamente enraizada na cultura japonesa. Uma das palavras-chave desta obra é a autenticidade, desde a linguagem, aos figurinos, aos cenários e todo o cuidado em termos de encenação que ao respeitar os rituais provoca um sentimento de constante deslumbramento. É uma série única e a produção mais dispendiosa da história do canal FX (que faz parte do império Disney).
«Shogun» foi criada para televisão por Rachel Kondo e Justin Marks a partir do livro homónimo de James Clavell. O mesmo já tinha sido adaptado para televisão e ainda são alguns os espectadores que têm na memória a popular mini-série dos anos 1980 da NBC.
«Shogun» tem várias figuras centrais, a começar por John Blackthorne (Cosmo Jarvis, numa performance estóica). É um estranho num mundo desconhecido, um navegador inglês num navio encarregue de destruir as feitorias comerciais portuguesas e espanholas no Oriente. A pós cruzar o Estreito de Magalhães, a embarcação é apanhada numa tempestade, anda à deriva e é atacada pela fome e pelas doenças, tudo na sua busca pelo Japão. A chegada de John Blackthorne, considerado um bárbaro pelos japoneses, traz um prenúncio de grandes mudanças no território. O seu desígnio mercantil é o de acabar com os portugueses na região e abrir o comércio a Este ao reino inglês (ressabiado pelo Tratado de Tordesilhas). Junta-se à ambição o ódio religioso entre os católicos portugueses e os protestantes ingleses. Os portugueses através dos Jesuítas têm a região na sua mão e têm uma agenda estratégica que conta com o apoio de alguns lordes feudais japoneses da corte. Esta é uma subtrama muito interessante que nos ajuda a compreender como a religião serviu também de porta de entrada para as grandes riquezas geradas através das trocas comerciais.
Outro vértice desta série é Yoshii Toranaga, interpretado por Hiroyuki Sanada («O Último Samurai», «John Wick: Capítulo 4», «Westworld»), um poderoso senhor da guerra. Antes de morrer, o Imperador decretou que cinco regentes governariam o Reino até que o seu herdeiro chegasse aos 16 anos. Foi uma forma para os regentes não se eliminarem mutuamente numa guerra civil, e assim se criou um impasse até ao crescimento do herdeiro. Um dos aspectos deliciosos desta série são os jogos de estratégia e poder que são ardilosos e carregados de dissimulação, enganam e seduzem os próprios espectadores. Yoshii Toranaga pensa usar John Blackthorne que, entretanto, inicia um processo de assimilação dos costumes japoneses. O navegador britânico percebe que a sua vida está em jogo (quando se cruza no carcere com um personagem interpretado pelo nosso Joaquim de Almeida) e deve criar aliados se deseja sobreviver. Toranaga, que era confidente do Imperador mas não deseja poder, tenta criar discórdia no conselho protegendo John e a si mesmo. Toranaga cria assim incerteza na corte entre os regentes que o desejam eliminar invocando sentimentos de divisão face à influência estrangeira dos jesuítas. Estabelece-se um jogo pela sobrevivência e controlo da corte. Yoshii Toranaga, apesar da riqueza e o poderio militar do seu clã, não deseja o título de Shogun (que considera ser uma relíquia do passado). Ele faz isto para não gerar uma guerra da qual ele, possivelmente, sairia perdedor face aos outros quatro regentes que desejam destituí-lo para eliminar o seu poder.
O destino junta as pessoas e John Blackthorne vai ter um papel fundamental neste grande período de convulsão e Toda Mariko (Anna Sawai), a filha de um antigo aliado de Yoshii Toranaga vai ser a sua tradutora. Ela terá o papel de cuidar directamente de John como sua tradutora. Deste modo, protege-o e impede a adulteração das palavras de John pelos jesuítas portugueses que se sentem ameaçados pela sua presença na corte. A relação entre Mariko e John é o coração desta série. Destaque para Anna Sawai, uma estrela em ascensão, com um papel magnífico na representação de uma mulher que deseja ser lutadora e independente no Japão feudal.
O elenco é maioritariamente japonês e há muitas mais narrativas nesta complexa trama. O facto de termos os actores japoneses a falarem japonês fez toda a diferença. Na versão original temos as legendas em inglês, o que provoca precisamente essa assimetria e os devidos contrastes que se pretendia criar neste confronto de culturas. Um factor se torna mais aprofundado quando se começa a explorar as mil e uma nuances muito além da comunicação. Mais uma vez, os criadores geraram uma atmosfera verosímil para os actores e especialmente a audiência. Os actores japoneses e os extras treinaram não só a língua japonesa daquela Era como também os movimentos que são dignos de um bailado visual para os nossos olhos.
«Shogun» tem outra vertente muito interessante além da linguagem e dos trejeitos, é a apresentação de um estado mental face ao mundo. John vai aprender com Mariko uma autêntica filosofia de vida, um manual de sobrevivência num mundo injusto onde se escondem os verdeiros sentimentos, a dor e os desejos.
É evidente que a série, ao se desenrolar no Japão feudal, mas ao lidar com sentimentos universais, traz a obra para uma dimensão contemporânea e emocionalmente palpável. «Shogun», da Disney+, é daquelas séries que valem uma assinatura. Funciona como um extraordinário momento de Televisão – aliás, o lançamento na plataforma streaming segue o modelo clássico da caixinha mágica, com os lançamentos semanais de cada episódio, um verdadeiro ritual para os apaixonados por esta monumental série.
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