Reality possui um duplo significado no filme «Reality», 2022. Por um lado a realidade do quotidiano e por outro Reality, nome da protagonista. Na verdade, esta primeira obra da dramaturga e cineasta Tina Satter (sobretudo as grandes linhas de força do argumento) foi estruturada a partir dos registos áudio gravados durante a interpelação e posterior interrogatório levado a cabo por agentes do FBI (Federal Bureau of Investigation) que a 3 de Junho de 2017 abordaram a jovem Reality Leigh Winner (n. a 4 de Dezembro de 1991) no momento em que regressava a casa na sequência da prosaica “missão” de fazer compras num vulgaríssimo supermercado da cidade onde vivia e arrendara uma casa, Augusta, no Estado da Geórgia (EUA). Para melhor enquadrar este caso, precisamos de saber que Reality já era na época uma veterana da Força Aérea dos Estados Unidos, especialista de línguas estrangeiras ao serviço da NSA (National Security Agency), fluente em Farsi, língua falada no Afeganistão, Irão e Tajiquistão e também por minorias no Iraque, Uzbequistão, Turquia, Emirados Árabes Unidos e Barém. Para além do Farsi dominava o Dari (persa afegão) e o Pashto (uma das línguas oficiais do Afeganistão). Foi nesta última ocupação profissional que o FBI a foi confrontar nesse dia fatal para a sua carreira no contexto dos serviços de informação norte-americanos. De início, a abordagem do FBI parecia enquadrar-se numa simples operação relacionada com rotinas de segurança mas, pouco a pouco, iremos perceber que havia muito mais por detrás das perguntas dos agentes, verbalizadas com artimanhas e falinhas mansas que apelavam ao carácter voluntário da colaboração de Reality numa situação que na prática podia parecer mas não era nada normal. Diga-se, menos normal ainda porque, subvertendo algumas regras básicas e ao contrário do que deviam fazer, mencionaram mas não mostraram logo o mandado de busca que lhes dava plenos poderes de revirar a casa de Reality, de vasculhar o seu carro e até revistar o seu próprio corpo, caso fosse necessário confirmar que não estava armada. Mas no filme a jovem Reality (interpretada magistralmente por Sydney Sweeney) desde cedo correspondeu ao que seguramente a realizadora lhe pediu, ou seja, manteve no seu rosto e comportamento uma ambiguidade latente de modo a que o espectador se interrogasse a cada minuto e a cada situação mais densa se ela sabia ou não a razão maior que estava por detrás da operação do FBI. De igual modo, os dois agentes federais, Garrick (Josh Hamilton) e Taylor (Marchánt Davis), a partir de certa altura vão intensificar a sua atitude inquisitória ao revelarem que sabem muito mais do que Reality podia supor. Deste modo, daí para a frente iremos assistir aos acutilantes jogos florais de uma dupla que finalmente lança novas cartas sobre a mesa de um jogo inicialmente articulado num conjunto de frases directas mas sinuosas, fabricadas com a enganadora filosofia do polícia bom por contraste com a intervenção habitualmente musculada do polícia mau. Os dois vão assim alterar o modo de ser e estar para fazer soçobrar a capacidade de resistência de Reality naquilo que começava a ser óbvio, ou seja, que ela escondia igualmente o seu jogo. Na realidade, Reality Winner não era propriamente uma pessoa experimentada no ramo da espionagem, nem uma agente ao serviço de interesses inconfessáveis. Se assim fosse, os do FBI não conseguiriam em poucas horas obter os resultados que alcançaram. No fundo, o poder de confronto e dissimulação que ela demonstrava num quadro de grande fragilidade deve-se ao facto de ter agido com a consciência de que estava a fazer aquilo que considerava justo numa democracia e num estado de direito: o dever cívico de denunciar o que pensava dever ser denunciado e que de acordo com as autoridades constituíra uma grave fuga de informação. Todavia, como repetidas vezes afirmou, nunca quis seguir o exemplo de um “whistleblower” como Edward Snowden. Há mesmo uma frase lapidar que a ela foi atribuída e que surge no filme como remate e síntese da motivação de Reality enquanto mulher americana com autorização especial para aceder a documentos classificados pelo seu país: “I knew it was secret. But I also knew I had pledged my service to the American people – Sabia que era secreto. Mas de igual modo sabia que jurei servir o povo americano”. Não obstante a relativa “ingenuidade” de Reality e a noção que ela interiorizou sobre o relativo bom serviço que prestara num panorama muito complexo da vida política e social americana, a quebra de confiança foi razão considerada suficiente para a sua detenção por quatro anos, sem direito a fiança. E o que fez ela afinal? Numa semana particularmente agitada da sua vida pessoal, subtraiu dos arquivos da NSA um relatório que dava conta de uma alegada interferência da Rússia nas eleições americanas de 2016 (a que colocou Donald Trump na Casa Branca). Relatório que enviou para publicação num website de esquerda, “The Intercept”.
Do ponto de vista da produção e realização, destaque-se o facto de não se fazerem julgamentos morais ou condenações arbitrárias das pessoas envolvidas, nem juízos sectários ou panfletários do que se passou. O foco centra-se antes nas palavras ditas por cada um dos intervenientes que deram corpo e voz aos acontecimentos de 3 de Junho de 2017, que terminaram com a detenção de Reality. Para acentuar a exposição do real, os argumentistas usaram generosos fragmentos das gravações do FBI, e nelas a preocupação de Reality com os seus animais de estimação, uma cadela e uma gata, fica como curioso apontamento pessoal e humano numa ficção baseada integralmente na realidade nua e crua de um dia na vida de uma cidadã caída em desgraça nos Estados Unidos da América.
Entretanto, com a proximidade das próximas eleições americanas, ao vermos aqui e agora este filme fica no ar o inevitável pensamento de que provavelmente algo vai continuar a derrapar num país com cada vez mais dificuldade em se ver ao espelho numa renovada conjuntura geoestratégica, independentemente da vigilância que as autoridades exerçam sobre os que possam ultrapassar as linhas vermelhas da segurança nacional. Esta ideia sairá reforçada se, no próximo mês de Novembro, aquele que ganhou as eleições em 2016 voltar a ganhar, com ou sem interferências externas.
Para os devidos efeitos, um filme que merece um olhar atento e uma profunda reflexão sobre a realidade concreta dos dias que passam, assim como do mais que expectável e iminente futuro.
Título Original: Reality Realização: Tina Satter Elenco: Sydney Sweeney, Josh Hamilton, Marchánt Davis, Benny Elledge, John Way Duração: 83 min. Estados Unidos, 2023