Não deixa de ser curioso que, depois do Óscar ganho por «Oppenheimer», Cillian Murphy nos pareça muito mais ator de corpo inteiro em «Pequenas Coisas Como Estas» do que foi no tão badalado filme de Christopher Nolan. Só por isto: onde a obra que retrata o “pai” da bomba atómica afoga a interpretação do ator irlandês, confundindo-a com a sua própria grandiosidade formal, o drama meticuloso de Tim Mielants permite que respiremos a atmosfera de mal-estar da sua personagem, um simples carvoeiro cuja silenciosa hipersensibilidade aos fenómenos da pequena vila onde vive inspirará uma tomada de ação. Qual? Bem, primeiro é preciso compreender o contexto.
«Pequenas Coisas Como Estas» é uma adaptação do notável romance homónimo de Claire Keegan (autora de “Foster”, que também deu origem a outra belíssima adaptação em 2022, «The Quiet Girl») e uma história ambientada na Irlanda dos anos 1980, quando as “Lavandarias de Madalena” – autênticas casas de escravatura disfarçadas de instituições religiosas para acolher jovens mães solteiras – ainda vigoravam, através da Igreja Católica, na realidade profunda do país. É aí que surge Bill Furlong (Murphy), o dito carvoeiro introvertido, presença regular à porta de uma dessas instituições (por ele abastecida nos meses frios), que no Natal de 1985 começa a ser invadido por memórias longínquas da sua própria mãe solteira, ao mesmo tempo que os sinais doentios da comunidade se entranham numa perceção quotidiana. Basicamente, o que acontece é que Furlong, na sua quietude benigna, vai-se deixando tomar por uma consciência aguda, que não mais se alinha com a atitude passiva e cobarde da esposa. De resto, a atitude da maioria da população local.
Muito diferente da comédia dramática de Stephen Frears, «Philomena», ou da série de thriller «A Mulher na Parede», ambas distintas abordagens do tema dessas lavandarias, «Pequenas Coisas Como Estas» leva-nos num abismo interior que se manifesta de forma tão discreta quanto intensa. É ver como Cillian Murphy (também produtor do filme) se compromete com os detalhes de uma dor enraizada, que percorre toda a fisionomia de um homem bom, cujo ato de lavar as mãos esconde uma força diversa do significado dado a tal expressão… Por outras palavras: as suas mãos limpas correspondem a um coração puro.
Porventura, a virtude da realização de Tim Mielants passa aqui especificamente pela serenidade com que agarra o texto; sem empolamentos, sem histerias. Um pouco como Colm Bairéad agarrara a prosa subtil de “Foster”. Caso para dizer que o segredo está na fonte literária – basta respeitar os seus silêncios.
Título original: Small Things Like These Realização: Tim Mielants Elenco: Cillian Murphy, Eileen Walsh, Emily Watson Duração: 98 min. Irlanda, Bélgica, Estados Unidos, 2024