Steven Spielberg conseguiu estabelecer-se como o rei de um género ao consagrar-se no seio da aventura (sempre numa mescla com a fantasia), é uma tarefa árdua, porém é ainda mais desafiador quando um cineasta com uma mestria (e uma majestade) desse porte se propõe a arriscar a sua criatividade em diversos filões – sobretudo num momento de maturidade.
São poucos os artesãos autorais da imagem que se jogam na pluralidade de registros dramatúrgicos como Spielberg – hoje debruçado sobre um remake do thriller «Bullitt», de Peter Yates, de 1968 – fez, indo da fábula («E.T.») à épica do assombro na História («A Lista de Schindler»). Nos últimos anos, o realizador de «Parque Jurássico» (1993) gravitou pelas vertentes mais inusitadas do cinema pop, com passagens recentes pela sci-fi («Ready Player One: Jogador 1») e pelo musical («West Side Story»). Fez comédia («1941»), drama («A cor purpura») e há, em seu futuro próximo, um projeto de diálogo com as BDs, por via de “Black Hawk”, da DC Comics. Faltam-lhe ainda alguns outros veios, mas o da autobiografia acaba de concretizar com o encantador «Os Fablemans».
O filme é uma espécie de «Cinema Paraíso» pipoca, uma homenagem à arte de filmar sendo, também, uma triagem de todos os processos que a sua geração tomou para fundar uma nova estética a partir de uma vivência de sala de projeção, como espectador. Ele apenas troca o apelido de Spielberg para Fabelman e elege Gabriel LaBelle para ser o seu alter-ego na juventude. Michelle Williams dá um contorno de excentricidade à jovem matriarca de uma família judaica oprimida no seu lugar de controle de uma casa e de um clã. Mas é Paul Dano que mais brilha no esforço de contenção ao criar um pai submisso a deveres e a um projeto de família feliz.
Projeto que se alinha ao espectro de uma american way of life em ruínas apontado pela horda de diretores com quem Spielberg se alinhou nos tempos da chamada Nova Hollywood. O melhor caminho para que se entenda a grandeza de «Os Fabelmans» – na fotografia apolínea de Janusz Kaminski talvez seja realizar um balanço geracional do tempo no qual Spielberg se formou. Esses realizadores eram os chamados Easy Riders, em referência ao filme homónimo de Dennis Hopper, lançado em 1969 e tido como a carta de intenções de uma nova poética fílmica desesperada pelas chagas de sua pátria. Essas chagas eram, em geral, políticas e sociais – com destaque para a exclusão dos pobres e o dos imigrantes e o massacre dos jovens fãs dos Beatles e Rolling Stones mortos no Vietnam. Mas também havia as chagas da própria imagem, ou seja, a impotência que o próprio cinema teve de deflagrar uma revolução a partir da sua habilidade de (re)interpretar o mundo ao colocar sua memória em movimento. É aí que Spielberg entra – e com força total.
Logo nos momentos iniciais de «Os Fabelmans», o casal Mitzi (Michelle) e Burt (Dano) leva o filho – um espelho de Steven chamado Sammy – para ver um filme, inaugurando sua cinefilia com uma narrativa pontuada por uma catástrofe ferroviária . O desejo de reproduzir o impacto de um comboio a colidir com um carro detona no garoto a vontade de filmar, numa rota das curtas às longas. O encontro com um tio apaixonado pela arte, Boris (Judd Hirsch, em genial participação), ajuda a moldar o seu discurso cinematográfico. Discurso que, na vida real, vem da relação contínua de Spielberg com o grande ecrã. Com formação típica de um cinéfilo (que assume com orgulho), Steven, nos seus anos de formação, auxiliado por uma TV permanentemente ligada nas suas noites, foi um espectador atento e assíduo. Conheceu o cinema europeu e sua “política de autor” num período em que os grandes estúdios de Hollywood se curvavam à criatividade dos diretores independentes. Conheceu também John Ford, Howard Hawks e Akira Kurosawa de quem sempre falou com entusiasmo.
Kurosawa tornava épicas situações corriqueiras. Spielberg, também. É o que se vê numa devastadora sequência de «Os Fabelmans» na qual Sammy percebe a infidelidade conjugal da sua mãe a partir do convívio dela com um amigo do seu pai – papel que dá a Seth Rogen espaço para uma madura interpretação. Ali, uma situação doméstica, pessoal, ganha um peso gigante. Mas Spielberg também aprendeu com Kurosawa a valorizar a condição humana acima do exotismo. Foi o que Spielberg disse em Cannes, numa entrevista de 2017:
“Existe uma diferença entre heróis e super-heróis. O herói é uma pessoa comum que se depara com um facto grave e age para modificá-lo. Um herói é uma pessoa que, andando pela rua, vê um carro pegar fogo e corre para ajudar a soltar a pessoa que está no banco do condutor presa pelo cinto de segurança. Super-herói é uma pessoa que, diante da mesma cena, voaria até o carro e tentaria vira-lo de cabeça para baixo e sacudi-lo, usando a sua superforça, até que o motorista se solte. Eu me identifico mais com o primeiro exemplo. Filmo heróis quotidianos”.
Os heróis de «Os Fabelmans» são pessoas que sofrem, choram, encantam-se, amam, erram na translúcida experiência do dia a dia. Que belíssimo filme.
Título original: The Fabelmnans Realização: Steven Spielberg Elenco: Michelle Williams, Gabriel LaBelle, Paul Dano, Judd Hirsch, Seth Rogen Duração: 151 min. EUA, 2022
https://www.youtube.com/watch?v=8xrBhvVJTwI&t=2s