Há um prenúncio de morte, quase podemos dizer que sentimos o cheiro da explosão e expansão maligna de um cancro no corpo de um homem que acompanhamos numa convulsa confissão diante de uma bateria de câmaras de filmar. Ele, Leonard Fife (Richard Gere), olha para a objectiva principal e os projectores que o iluminam obscurecem o círculo fechado em que se expõe numa posição frontal ao eixo, plano reforçado por dois outros com ângulos de quarenta e cinco graus (direita e esquerda). Esta luz espectral obscurece os contornos do quarto e oculta os rostos dos seus cúmplices, presentes no local de rodagem: a mulher, Emma (Uma Thurman), que no entanto ele quer ver para melhor articular o relato das memórias que deseja revelar pela primeira vez, e os cúmplices e companheiros de um passado mais ou menos distante em que os protagonistas são, entre outros, mais uma vez a citada mulher e, num plano mais impessoal, um seu antigo aluno do curso de cinema documental, o cineasta Malcolm (Michael Imperioli), que o agora entrevistado enquanto professor ensinara a entrevistar e a dar o salto para a realização. Desde o início paira igualmente no ar a noção de que, mais minuto menos minuto, nos será revelado o verdadeiro significado da expressão «Oh, Canada» (que numa leitura superficial seria só e apenas o nome dado ao hino nacional canadiano). Mas no filme «Oh, Canada», 2024, escrito e realizado pelo veterano Paul Schrader, o significado e o significante não nos são dados de mão beijada e, digo eu, ainda bem. Porque há sempre mais vida e mais matéria para além da relevância das coisas ditas.

O argumento de «Oh, Canada» foi baseado na obra literária “Foregone”, do escritor Russell Banks (28 de Março, 1940 – 8 de Janeiro, 2023), e ainda nas inúmeras circunvoluções do que foi o seu percurso enquanto cidadão americano nascido em Newton (Massachussetts), no seio de uma família que passou por grandes dificuldades económicas. Não obstante a relativa marginalidade social, as voltas do destino permitiram-lhe conquistar o direito a uma bolsa para frequentar a Colgate University (Hamilton, Nova Iorque). Todavia, passadas algumas semanas abandonou a instituição com o intuito de se juntar ao que era na época o exército rebelde liderado por Fidel Castro que, com outros revolucionários como Camilo Cienfuegos ou o mítico Ernesto “Che” Guevara, lutava contra Fulgêncio Baptista, ditador cubano apoiado pelas forças mais reaccionárias dos EUA, pela Mafia e pelos mais destacados gangsters que faziam da ilha das Caraíbas um antro de prostituição, consumo desenfreado de álcool e outras drogas bem mais pesadas, no fundo um santuário para criminosos a poucas milhas da costa norte-americana. Russell Banks nunca chegou a participar na revolução, ficou-se pela Florida, encalhado num emprego de rotina. Paul Schrader dedica-lhe este filme em que a personagem de Leonard Fife (interpretada por Richard Gere na maturidade e velhice e por Jacob Elordi na juventude) incorpora no seu percurso ficcional e existencial parte do que o autor do romance viveu na realidade. Todavia, porque sabemos que a realidade alcança outra dimensão no contexto cinematográfico, muito do que iremos ver e ouvir são reflexos sintéticos daquilo que Paul Schrader desejou que ficasse latente no corpo narrativo como um depoimento plasmado no corpo e na alma de um cineasta fruto da sua imaginação, aquele que por sua vez utiliza as personagens de ficção para se apresentar a si próprio e de corpo inteiro. Numa palavra, a força da ideologia do realizador de «Oh, Canada» materializa-se na pungente visão de um farrapo humano minado pela doença mas com um passado glorioso, feito da coragem dos não conformistas, pelo menos para os que acreditam na liberdade e no seu verdadeiro significado. Entre outros, o sentimento visceral de redenção que se adivinha na derradeira frase balbuciada a custo e com dor por Leonard Fife, «Oh, Canada». Será a revelação de uma intriga e de um mistério que Fife verbaliza na frágil intimidade do leito de morte (na verdade, ele continuou a ser filmado sem o saber)? De certo modo e salvaguardadas as devidas diferenças, faz lembrar o assombrado “Rosebud” no «Citizen Kane» («O Mundo a Seus Pés»), 1941, de Orson Welles. De facto, este será um jogo muito interessante de seguir na hora e meia que «Oh, Canada» nos oferece, a relação dialéctica entre a realização e o modo como as suas preocupações e motivações se conjugam na montagem fílmica das diferentes sequências com a contribuição desencantada e sustentada dos actores concentrados nos papéis que cada um defende. Desde o início que vemos Leonard Fife a ser seduzido pelo bem-estar capitalista, mas a sua leitura dos acontecimentos sociais e políticos leva-o a descartar esse relativo conforto feito de dependências familiares para enveredar por uma aventura mais ou menos controlada que o fará atravessar diversos lugares até por fim passar a salto a fronteira para o Canadá. E porquê? Na verdade, como muitos americanos fizeram na altura a que se refere aquele momento da acção (os anos sessenta do século XX, decorria então a Guerra do Vietname), o recrutamento forçado empurrou um bom número de jovens para a deserção pura e simples. A fronteira mais próxima e a sociedade com mais afinidades com o seu estilo de vida estava ali, no Canadá, sobretudo nas províncias anglófonas, mas também no Quebec, província maioritariamente francófona. Diversas sequências exemplares antecedem esta evasão para o outro lado, a margem norte que acolheu os que não queriam matar e morrer numa guerra que não lhes dizia respeito e que a partir de certa altura parecia irremediavelmente perdida. Não apenas no campo de batalha, mas na prática quotidiana dos americanos que sentiriam um murro no estômago ao visionarem as imagens da queda de Saigão (30 de Abril de 1975), uma das maiores derrotas que os EUA sofreram nos anais da sua História.

Dissemos atrás que a personagem do realizador Leonard Fife, numa fase última da sua vida, aceitou submeter-se a um acto de confissão, e ele sabe como poucos que a esperança da redenção está presente nessa prática inerente a muitos preceitos laicos e religiosos, e não apenas cristãos. Mas mesmo que não se acredite em Deus, cada vez que pronunciamos uma oração arrancada ao nosso ser mais profundo não estamos fatalmente a mentir. Neste caso, a confissão de «Oh, Canada» será o prolongamento natural dessa reza e dessa récita pessoal e interior, que se apresenta aqui fragmentada e nem sempre coerente. E esse constitui o maior desafio para o espectador que goste de fazer a síntese do que vê sem perder o fio condutor do que lhe foi apenas sugerido, não mostrado de forma ampla e luminosa. Filme concebido a partir de sombras, fotografado com uma paleta de cor outonal, salpicado na sua estrutura pelo preto e branco de algumas sequências onde se evita pela ausência cromática o primado das emoções. Em suma, uma belíssima obra realizada com austeridade e lucidez, que merece ser visto e revisto com os olhos bem abertos. Prova de que Paul Schrader continua, mesmo a caminho dos oitenta, em muito boa forma. Prova ainda de que não são precisos orçamentos de milhões nem mil e um efeitos especiais para se obterem bons resultados e produzir grande cinema.
Título original: Oh, Canada Realização: Paul Schrader Elenco: Richard Gere, Uma Thurman, Jacob Elordi, Victoria Hill, Michael Imperioli, Penelope Mitchell Duração: 91 min. Canadá/EUA/Israel, 2024
Fotos: © Oh, Canada LLC