De forma algo cínica, insidiosa e quase provocatória, no decorrer do primeiro capítulo do filme «Lee» («Lee Miller – Na Linha da Frente»), 2023, primeira obra de ficção para cinema realizada pela veterana Directora de Fotografia Ellen Kuras, ouvimos da boca de um inglês muito orgulhoso da sua “raça”, Roland Penrose (Alexander Skarsgard), palavras que definem com desassombro crítico o posicionamento pessoal e social da que viria a ser a sua futura mulher e amante, a modelo e fotojornalista Elizabeth “Lee” Miller (1907-1977). Nessa sequência, fulcral para nos introduzir aos desafios e contradições da protagonista de quem se fala, rodeados por ilustres comparsas da sofisticada classe ociosa que mergulhava os seus dias e noites nos ambientes burgueses e artísticos das primeiras décadas do Século XX, o jovem Roland afirmava que a musa de artistas e intelectuais como Man Ray, Pablo Picasso, Paul Éluard, Jean Cocteau, a cúmplice de mulheres que viviam intensamente os grandes movimentos culturais que se seguiram ao pesadelo da Primeira Guerra Mundial e explodiram como gritos “loucos” de liberdade em relação aos costumes e convenções reaccionárias que contrariavam o mínimo comportamento inovador, vivia numa espécie de redoma esquizofrénica. Tudo porque Lee Miller, a modelo, fotógrafa de arte e capa da Vogue, era uma rapariga da classe média americana que para os ricos e famosos com quem se dava não era mais do que um ser bafejado com um corpo e rosto de sonho. Entretanto, para os pobres, era a menina rica que eles invejavam ou, na mais crua e realista das hipóteses, criticavam e condenavam no plano das intrincadas relações de classe.

Deste modo, no percurso de Lee existiam dois mundos aparentemente antagónicos, e entre eles dividia-se a mulher livre que procurava ser ainda mais livre ao ponto de optar pelo risco da aventura que até podia colocar em causa o seu estatuto e bem-estar económico. De facto, a associação a uma lógica capitalista de comunicação, corporizada pela sua presença e colaboração na revista Vogue, ao mundo das artes de vanguarda e a figuras proeminentes com quem se envolveu sentimentalmente deram-lhe o conforto necessário para prosseguir em frente com os seus desígnios de independência numa altura em que as mulheres estavam longe de a obter. Todavia, o eclodir da Segunda Guerra Mundial veio alterar a equação, não só a do bem-estar como igualmente a que até ali fora a redutora condição feminina. O estatuto das mulheres foi gradualmente alterado para lhes impor, mais do que para lhes oferecer de mão beijada, um acesso a funções outrora reservadas aos homens. Será neste contexto que Lee dará uma grande volta na sua carreira. Na verdade, a violência do Blitz, o ataque da Alemanha nazi a Inglaterra que visava, entre outras, a cidade de Londres onde passou a viver com o seu crítico e bem-amado Roland Penrose, motivaram Lee a sair para a rua de modo a registar o ambiente que então prenunciava dias piores. Depois de alguma resistência por parte das autoridades militares britânicas em aceitá-la como repórter de guerra com os mesmos direitos e deveres dos seus colegas masculinos, Lee “descobriu” que era americana e que para alcançar os seus desígnios devia era contactar as forças armadas do seu país, que em Dezembro de 1942 já se encontravam na Europa. Dali para a frente, Lee passou a ser correspondente de guerra do Exército dos Estados Unidos, e nessa categoria profissional, onde não obstante experimentou de novo a segregação das mulheres no quadro militar, fotografou momentos decisivos da guerra em curso: o pós-desembarque da Normandia, a utilização de bombas de napalm na comuna de Saint-Malo (Bretanha), as jornadas de glória e resistência com a consequente libertação de Paris, e aquela que foi seguramente a mais dramática das experiências, a libertação dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau com a posterior inventariação fotográfica das atrocidades cometidas pelos nazis. Pelo meio, Lee, a mulher libertadora e libertada, fazia jus ao seu lema, o de ser muito boa em matéria de bebida, sexo e, naturalmente, fotografia. Parte significativa do filme passa-se na linha da frente destas actividades que praticou com um inusitado grau de insubmissão a regras castradoras que hoje nos parecem corriqueiras mas que há uns anos podiam comprometer e degradar seriamente a reputação dos mais santos.

Para os devidos efeitos, mais do que ninguém, a actriz Kate Winslet no papel protagonista carrega aos ombros este projecto baseado na biografia “The Lives of Lee Miller”, escrita pelo filho, Antony Penrose. Mas o argumento e realização acabaram por circunscrever a Lee Miller ficcional aos mínimos de um biopic que nunca levanta do chão a força vital que a impulsionou nem a “missão” de alguém com um passado conturbado e nada meigo no que diz respeito a relações familiares (onde se inscreve um conjunto de retratos de nus fotografados pelo seu pai) e que, muitos anos depois de numerosos sobressaltos existenciais, chegou a ser investigada por suspeitas de pertencer a um grupo de espiões pró-soviéticos. Preferiram os produtores, para balizar a narrativa, dar corpo e alma aos dias finais da depressão que a assolou e que a isolou numa propriedade rural, Farley Farm, onde o filho (Josh O’Connor) a foi confrontar com o passado. Desse confronto sobressai a presença da mãe que, no entanto, se esvai ficando o vazio, ou seja, outra forma de remeter Lee ao silêncio das sombras densas projectadas a partir do que antes foram episódios de vida intensamente iluminados. Esta premissa sintetiza o essencial do que vemos: na prática, em «Lee Miller – Na Linha da Frente» vale a pena descobrir a figura de uma mulher de armas e convicções, mas ao longo do visionamento pensei mil vezes em como se podia ir mais longe na exposição das razões do ser e estar de uma mulher nada convencional. No modo como se podia agarrar com vigor os dados biográficos conhecidos, nem precisavam de ir aos mais escondidos, para nas voltas e reviravoltas do destino individual lhes dar a consistência necessária para os salientar na visceralidade do devir colectivo. E, já agora, na afirmação da condição feminina, sem rodriguinhos ou demagogias desnecessárias. Fica assim um filme melhor do que muitos que vão entretanto estrear, mas longe do que a verdadeira Elizabeth “Lee” Miller merecia.

Título original: Lee Realização: Ellen Kuras Elenco: Alexander Skarsgård, Kate Winslet, , Andrea Riseborough, Josh O’Connor, Marion Cotillard, Noémie Merlant, Andy Samberg Duração: 116 min. Reino Unido/EUA/Noruega/Austrália/Irlanda/Singapura, 2023

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