O quebrado hiato de três décadas de Victor Erice entra em diálogo com o mais recente projeto de Nanni Moretti («O Sol do Futuro»), não enquanto obras de “Cinema Morreu, há que seguir em frente”, mas o oposto ao ensaio morentiano, o de poder / voltar acreditar nos “milagres” do Cinema.
A certa altura em «Fechar os Olhos», o projecionista de um filme-mistério, o macguffin que puxa um outro macguffin, refere, incrédulo perante a façanha que está a colaborar, de que milagreiro o Cinema nada tem desde a morte de [Carl Theodor] Dreyer. É um “velho do Restelo”, contudo, não encontramos velhacos aqui. O cineasta espanhol assinou alguns dos mais belos filmes da nossa história («O Espírito da Colmeia» (1973), «O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro» (1992)). Felizmente Victor Erice retorna ao formato longa-metragem após experimentos e curtas durações (não descartando a sua mestria nesses territórios), para nos enfatizar o seu prazer cinematográfico em tempos cuja o belo está banalizado, e consequentemente as imagens projetadas em tela.
Tal como o lamento da também retornada Ana Torrent (a ‘menina’ icónica do ‘O Espírito da Colmeia»), no papel de Ana Arenas, a guia do Museu do Prado, sobre a monotonia de discursar perante os visitantes sobre as mais excepcionais obras de arte, vezes sem conta, convertendo essa particularidade num gesto automático e garantido. «Fechar os Olhos» é, neste contexto, um filme sem a bravura de transcender o que quer que seja, o estabelecido continua estabelecido. Não existe outra linguagem fora do seu clássico sentido de cinema, mas persiste, contra a vontade de muitos, como um dos filmes mais importantes produzidos neste ano. A obra não se resume, exclusivamente, ao regresso de Erice ao lugar de maestro, numa altura em que o Cinema é encarado como vulgar integrando-se no quotidiano, no escapismo e na transmissibilidade aos mais diferentes espaços e ecrãs (culpamos esse discurso e cultura do “cinema nas séries” e não só). «Fechar os Olhos» surge como um gesto de um “velho” que deseja (voltar) acreditar no poder cinematográfico sem o uso dos mais fáceis sentimentalismos ou manipulações de qualquer género.
«Fechar os Olhos» é uma obra de tela, de crença revitalizada e na conquista dos géneros caducados e alheios a “modernizações”. Victor Erice prega a missa há muito adiada, o Cinema está entre nós, esse Poder, esse afrodisíaco aroma com que nos traz, e através desse ‘milagre’ acreditarmos com ele. Tal como o título indica, até mesmo no acto de “fechar os olhos” as imagens permanecem na mente e no coração. É um thriller sobre o desaparecimento de um ator, mas no fundo é a busca pelo Cinema que muitos impõem como enterrado e outros subjugados às novas tendências, é a frente contra esses discursos nefastos. Por vezes, voltar ao início é sofisticar-se e Victor Erice, com o cinema sempre a regê-lo, converte-se num realizador do século XXI, ao devolver o perdido encanto do ecrã.
Título original: Cerrar los ojos Realização: Víctor Erice Elenco: Manolo Solo, Jose Coronado, Ana Torrent Duração: 169 min. Espanha/Argentina, 2023
https://vimeo.com/881141150