Com bastantes alterações no lombo autorizadas pelo autor, «Dulcineia» – adaptação do romance de João Tordo (“O Ano Sabático”) – se compreende como a terceira longa-metragem de Artur Serra Araújo, realizador bem discreto na nossa praça que tem captado alguma atenção, mesmo em situação de nicho («Suicídio Encomendado», «A Moral Conjugal»). Uma obra remexida em território sacralizado da literatura e que no cinema se impõe em alguns exercícios narrativos, desde os tempos expressionistas como «O Estudante de Praga» até aos mais contemporâneos «O Homem Duplicado» de Denis Villeneuve (conversão de um homónimo livro de Saramago) e o muito esquecido e curioso «O Duplo» de Richard Ayoade (com bases em Dostoiévski), o tema, esse, são os doppelgangers, seja conscientes ou inconscientes, que no caso do livro de Tordo se promovem como uma espécie de alusão ao síndrome de impostor. Aqui, Hugo (António Parra) é um pária sentimental-criativo que passou um ano – sabático considera ele – em Marrocos, onde secretamente compôs uma melodia que mais tarde batiza de “Dulcineia”, em homenagem à jovem empregada (Alba Baptista) ao serviço da sua irmã. No regresso a Portugal, tenta reconstruir a sua vida estagnada e ao mesmo tempo dedicar-se a essa música que no íntimo acolhe como uma prometedora emancipação, só que, num encontro casual cujo destino o deparou com um concerto de um pianista na berra, Stockmann, acabaria por ouvir a sua exata composição a ser performada em palco. Uma coincidência dos diabos que levará Hugo à loucura e à autodestruição, até porque este Stockmann, de um semelhança atroz, está a viver a vida que o nosso protagonista ambicionava para si. A história de uma penosidade e de uma crueldade para com o seu “herói passivo”, é induzido numa reconstrução estética sobretudo estática, os planos esse, pensados desde a sua raiz, adquirem um maior sentimento que o desenrolar do drama, em plena luz a um amorfismo, com desempenhos démodés e com alguns erros de casting (Alba Baptista, por exemplo). Um filme de gravitas e de tragédias que nunca se cumprem, não por culpa do argumento, mas pela dedicação de invocá-lo em grande ecrã. Cinema português ao gosto da secura, como muito vinho branco, fresco mas esquecível, bebendo cada gole forte para saciar, imaginariamente, uma hipotética sede. Por outras palavras, «Dulcineia» não é o alarve televisivo estampado em tela, mas enquanto cinema é inexpressivo.
Título original: Dulcineia Realização: Artur Serra Araújo Elenco: António Parra, Alba Baptista, Ana Cunha Duração: 88 min. Portugal, 2023