A Detetive Russa (editora Asa) é um livro fulgurante, uma narrativa brilhante inspirada nos policiais russos do século XIX. Uma proeza de Carol Adlam que combina o policial de investigação com a sua imaginação e o poderoso legado da tradição literária russa, com doses cavalares de humor. Embora seja uma novela gráfica, a obra de Carol Adlam nos transporta para um filme de Wes Anderson, pois ela investiu em uma composição de época e em personagens ricos em pequenos detalhes que nos encantam ao longo de um policial de investigação ambientado em uma paisagem russa coberta de neve.

O mistério desenrola-se na Rússia, no século XIX, numa cidade em parte incerta apelidado de “Nenhuresgrado” [Nowheregrad] [Grad cirílico significa “cidade”]. “Charlie Fox” é o nome de guerra da nossa heroína jornalista, Charlotta Ivanovna (também conhecida como a “raposa”) viaja com o seu cãozinho Igoryok. Charlie tem um nome e uma fisionomia apropriada que a fazem passar por um rapazinho. Ela está a caminho da cidade que abandonou há imenso tempo. Estamos em 1876, Charlie, a nossa protagonista, entra em cena a bordo de um compartimento do comboio. No mesmo espaço viajam um senhor reacionário, uma menina curiosa e a mãe desta que não acha piada a mulheres jornalistas que usam óculos com lentes azuis… Este primeiro plano permite aflorar o espírito de invenção desta novela gráfica, entre a palavra e a arte que parece de improviso, mas aqui não há nada que ser deixado ao engano.

A investigação é mais imprevisível e com poucas palavras mas muitos detalhes. Os acontecimentos escalpelizados cirurgicamente numa belíssima economia narrativa que conta o que é necessário e deixa a imaginação fazer o resto e sempre com uma riqueza de planos, adereços e personagens peculiares criados por Carol Adlam.

Charlie chegou a “Nenhuresgrado” [Nowheregrad] porque levou ao limite o seu editor no jornal Balalaika. A sua cobertura na secção de crime deixou as autoridades da cidade em polvorosa, quando são encontradas algumas mulheres mortas e a jornalista ao cobrir o acontecimento sublinha a incompetência da Polícia. O editor retira-lhe a secção de crime e coloca-a na secção de moda e fofocas. Charlie é enviada para uma cidade remota, na vastidão da Rússia, para cobrir um casamento da filha de um magnata do vidro. Mas quando Charlie pensava que estava destinada a cobrir o gossip de um grande acontecimento social depara-se com um crime durante a festa de noivado. Afinal os dias da raposa sensacionalista de São Petersburgo ainda não tinham terminado…

Elena Ruslanova, a noiva de 19 anos é encontrada morta, o instinto detectivesco de Charlie entra em campo para nos levar nos meandros deste misterioso crime. A vítima estava num quarto trancado por dentro e que tinha um teto de vidro e uma janela circular. A melhor amiga da vítima era Anna e ela estava por perto. Anna Bobrova cresceu ao lado de Charlie, elas foram criadas em pequenas na mesma casa. O Major Petr Bobrov, o irmão de Anna é um imbecil possessivo e odeia Charlie.

O caso é liderado por um investigador pouco perspicaz e o seu agente despistado, mas Charlie anda sempre um passo à frente, disfarça-se como rapaz de apontamentos e acompanha o investigador e o seu assistente quando palmilham o terreno em redor da mansão, a jornalista acaba por encontrar algumas pistas do crime. Diante a mansão há um vasto jardim onde são encontrados uma bota, marcas de sangue e um pedaço de tecido preso na vedação. E Charlie descobre um diamante caído na neve. Uma denuncia leva a apreensão do alegado autor do crime, mas Charlie não está convencida com o principal suspeito. O seu desejo de desvendar o caso leva-a a ganhar afinidade com a emprega da mansão dos Ruslanov que era muito parecida com a vítima, a semelhança leva Charlie a urdir um plano para desvendar os verdadeiros suspeitos do crime. O lado policial anda sempre bem acompanhado pelo humor e o retrato social. A protagonista é muito espirituosa e cria as bases para uma história de investigação cerebral que coloca a personagem feminina como a força motriz deste relato perante um bando de presunçosos.

O desenho não está ancorado na vinheta, a página é um espaço de plena liberdade criativa e de constante reinvenção e não há duas páginas iguais neste livro. Carol procurou nesta história celebrar a mulher como heroína a partir de um conto perdido que estava numa narrativa original de um repórter de tribunal Semyon Panov publicada em 1876 com o título “Três Tribunais ou Um Homicídio no Baile”. A autora admite que houve cumplicidade na criação desta história com Claire Whitehead da Universidade de St. Andrews, uma especialista de ficção policial russa, foi ela quem pesquisou mais de 40 obras perdidas da ficção policial e escreveu sobre o período no livro “The Poetics of Early Russian Crime Fiction 1860-1917: Deciphering Stories of Detection”. Carol Adlam também presta tributo ao autor russo do século XIX que ninguém conhece, ninguém chora e ninguém traduz. A partir desta base, Adlam fez valer a sua licença artística, adicionou laivos de uma personagem de Anton Tchékhov da peça de 1904 “O Jardim das Cerejeiras” [“The Cherry Orchard”] para ser a sua protagonista e foi influenciada por mulheres jornalistas e/ou detectives infiltradas no final do século XIX.

O livro e a sua arte são uma expressão de rara criatividade onde não houve constrangimentos para manifestar, criar e ampliar uma história de detetives através de um desenho que faz-nos mergulhar num relato fantástico. A artista visual Carol Adlam fez maravilhas nesta exemplar novela gráfica da editora Asa.

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