Apesar de recentes insucessos comerciais dos filmes de super-heróis, a banda desenhada se mantém como um mercado de expressão global, a partir das livrarias europeias.
Fracassos recentes como «As Marvels» e «Aquaman 2: O Reino Perdido» demoliram o resquício de certeza que cercava o futuro da banda desenhada de super-heróis nas telas, que hoje se encontra ligada a ventiladores pela expectativa por «Superman» de James Gunn e o novo “The Batman”, com Robert Pattinson. Apesar disso, nos EUA, editoras como Marvel, Dynamite, DC, Image e Dark Horse seguem vendendo comics todos os meses. Na Europa, sobretudo em solo francês, as vendas altas se devem a BDs em formato encadernado, impressas em papel de luxo, que optam por narrativas de género (fantasia, sci-fi, western) ou por aulas de História (cheias de poesia) mas trilham caminhos que fogem do maniqueísmo.
Em sintonia com o lançamento da Netflix de «As Ladras» «Voleuses», editoras europeias (e brasileiras) dão ao mercado um espaço de destaque para a BD que inspirou o filme estrelado e dirigido por Mélanie Laurent: o thriller gráfico “A Grande Odalisca” [La Grande Odalisque”, edição original: Editora Dupuis], escrito por Bastien Vivès e desenhado por Florent Ruppert. Nele, Alex e Carole, duas assaltantes sedutoras e desencanadas, voam alto nos seus golpes e são capazes de furtar qualquer coisa, em qualquer museu. Mas diante da dificuldade da sua próxima missão, que as levará ao Louvre para surripiar a Grande Odalisque, a obra-prima de Jean-Auguste Dominique Ingres, elas saem em busca de uma terceira colega. Será que a motociclista Sam, com seus vários talentos, estará à altura do cargo?
Nas lojas especializadas de Lisboa, algumas das melhores BDs com tradução trazem a marca criativa do cineasta, tarólogo e xamã chileno (radicado em França) Alejandro Jodorowsky, o diretor de «El Topo» «The Mole, como é o caso da BD “Sangue Real” [“Sang Royal”, edição original: Editora Glénat], já à venda na Amazon, sob edição da Comix Zone. Dongzi Liu ilustra o álbum, regando sequências de batalhas capa & espada com coágulos frescos. A trama começa com um rei, o destemido Alvar, ferido, traído e abandonado à beira da morte. Destruído por seus inimigos, ele jura recuperar seu trono e seus direitos. Com o coração inflamado por um ódio selvagem, ele semeia a loucura e o terror, até que sua sede de vingança se volta contra ele, em um turbilhão de lágrimas e sangue. São 232 páginas de cores exuberantes.
Jodorowsky volta a soltar seus demónios avessos a moralismos em “Bórgia” [Edições Asa em Portugal/ Editora Glénat em França], amparado pelo traço do mais renomado erotômano da banda-desenhada na Europa: o italiano Milo Manara. É uma narrativa em quatro volumes publicados entre 2004 e 2010. O enredo leva-nos ao século XV, um tempo no qual, por meio de intrigas, subornos, ameaças e outros crimes, o espanhol Rodrigo Bórgia torna-se o papa Alexandre VI e dá início a um dos períodos mais controversos e deturpados da Igreja Católica, enquanto ostenta o cargo de seu representante máximo (de 1492 a 1503). Tido como o sumo pontífice mais corrupto de todos os tempos, ele faz da sua família o primeiro clã mafioso da História. Quatro grandes personagens – César, Lucrécia, Giovanni e Godofredo – levam a marca corrupta de Rodrigo pelo mundo.
Mas há novas vozes autorais criando expressões gráficas de respeito. Eis as BDs de maior sucesso em França, já editadas em português e espanhol:
UNDERTAKER: Os leitores franceses hoje se rasgam por essa série de faroeste, repleta de adrenalina, escrita por Xavier Dorison e desenhada por Ralph Meyer. Os dois narram os mil perigos que cercam Jonas Crow, um ex-soldado da Guerra de Secessão que troca a farda pelo uniforma de agente funerário itinerante. Cada caixão seu é repleto de pólvora. Editado em Portugal pela editora Ala dos Livros.
SCOTLAND (Les Missions Fantastiques de Kathy Austin): Luiz Eduardo de Oliveira, desenhador carioca que saiu do Brasil em 1971, para fazer carreira em França, sob o pseudônimo LEO, é um dos craques da equipa de artistas desta banda-desenhada de investigação e mistério, soltando sua verve crítica (e criativa) ao lado de Rodolphe e Bertrand Marchal. O trio conta a aventura da agente Kathy, que, de volta de uma passagem pela Amazônia, vai passar uma temporada numa cidade escocesa onde um artefato encrustado numa pedra pode gerar uma perigosa onda de energia. A edição original pertence à editora Dargaud.
LES FILLES DES MARINS PERDUS: Escrito por Teresa Radice e desenhado por Stefano Turconi, sob as rédeas da editora Glénat, este magistral painel de época assume como protagonistas as prostitutas do Pilar, um bordel para marinheiros em Plymouth. Mulheres empoderadas dão um nó no desejo alheio enquanto nos contam a história de um amante nada exemplar.
DISSIDENT CHRONIQUE D’UN JOURNALISTE PAKISTANAIS EXILÉ EN FRANCE: Uma joia de narrativa política. Em 2018, depois de ser vítima de uma tentativa de sequestro e assassinato no seu país natal, o jornalista investigativo Taha Siddiqui encontrou refúgio em França. Nesta graphic novel, acompanhada pelo quadrinista Hubert Maury, ele relembra a sua juventude, a sua carreira e a sua luta pela liberdade de imprensa. A edição original pertence à editora Glénat.
GINETTE KOLINKA – RÉCIT D’UNE RESCAPÉE D’AUSCHWITZ-BIRKENAU: Aos 97 anos, uma das mais famosas sobreviventes dos expurgos nazistas de judeus em campos de concentração tem a sua história passada em revista, em forma de HQ (ou melhor, BD), no traço finíssimo de Aurore D’Hondt. Numa mirada memorialista, ela encara os horrores do Holocausto. A edição original pertence à editora Des ronds dans l´O.
LADIES WITH GUNS: Amparada pelo espírito da equidade de géneros e da luta anti sexista, Anlor, pseudónimo da desenhista Anne-Laure Bizot, cria em parceria com o argumentista Bocquet Olivier um western regado a feminismo, em que cinco mulheres de origens distintas vão lutar contra as intempéries do Oeste Selvagem. A edição original pertence à editora Dargaud.
MEXICANA: Digna de um bom filme dos irmãos Coen, «Este País Não é Para Velhos» «No Country for Old Men», esta coletânea policial é assinada pelo argumentista do momento na França, Alexis “Matz” Nolent, em duo com Steven “Mars” Marten. O seu protagonista é Emmet Gardner, um guarda de fronteira que trabalha ao largo do Rio Grande, nos EUA, e vê sua vida desmoronar ao descobrir a conexão do seu próprio filho, Kyle, com um cartel local. Para livrar o rapaz do submundo, Emmet assume a tarefa de matar um criminoso, mas acaba por alvejar alguém com quem não se deveria meter. A edição original pertence à editora Glénat.
[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº103, Fevereiro 2024]